'A epidemia é de diagnósticos, não de transtornos mentais', diz especialista que participará de evento da SBPC na UFMG
É cada vez maior o número de pacientes diagnosticados com algum transtorno mental, como a depressão, a bipolaridade e o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). O crescente aumento do número desses diagnósticos será tema da conferência A epidemia de transtornos mentais, que ocorre em 21 de julho, a partir das 10h30, em local a ser definido, como parte da programação da 69ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), maior evento científico do hemisfério sul que será realizado na UFMG de 16 a 22 de julho com o tema “Inovação – Diversidades – Transformação”. Com programação aberta ao público, a expectativa é receber, no campus Pampulha, cerca de 10 mil pessoas por dia – do Brasil e do exterior – de diversas áreas do conhecimento. A reunião integra as comemorações dos 90 anos da UFMG, que serão completados em 7 de setembro deste ano.
O Portal UFMG conversou com a conferencista e professora Maria Aparecida Affonso Moysés, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sobre o aumento do número de diagnósticos de transtornos mentais que caracterizam uma epidemia que assola todos os países do ocidente.
Militante do Despatologiza – movimento pela despatologização da vida, iniciativa que articula discussões, eventos e ações sobre a medicalização da vida e da educação, a pesquisadora avalia que o diagnóstico errôneo de tais distúrbios dificulta ao país pôr em prática uma política efetiva de saúde pública que atenda quem realmente apresenta os transtornos. “O número de diagnósticos de transtorno mental é absurdo, e isso impede que muitas pessoas que realmente possuem o problema consigam ser tratadas na saúde pública”, diz.
O que é o fenômeno da medicalização da vida?
Medicalizar a vida significa transformar um problema coletivo em um problema pessoal. Hoje em dia, o sofrimento e a tristeza, que são sentimentos comuns, normais e gerados pelo modo como a sociedade se organiza, estão sendo transformados em problemas médicos. Um bom exemplo da medicalização da vida pode ser visto nas escolas. Se tem dificuldade de aprendizado, a criança é rapidamente diagnosticada com TDAH. Muitas vezes, ela não tem nada, e os seus problemas de aprendizado estão relacionados à política educacional do país e à falta de qualidade de muitas escolas. Um problema coletivo (a educação brasileira) pode ser transformado em um problema pessoal (a criança é diagnosticada com um transtorno mental).
O que a medicalização tem a ver com a epidemia de transtornos mentais?
É importante não falarmos em epidemia de transtornos mentais, e sim, em epidemia de diagnóstico de transtornos mentais. A medicalização está diretamente ligada a essa epidemia, porque, nos dias atuais, qualquer problema está sendo diagnosticado como transtorno mental. Sentimentos psíquicos que fazem parte da vida de qualquer pessoa, como os momentos de tristeza, por exemplo, estão sendo diagnosticados como depressão. A quantidade de diagnósticos mostra que há algo estranho nesse campo, a ponto de se pensar que talvez a normalidade tenha sido descartada. Nos Estados Unidos, registros dão conta de que 46% da população sofrem com algum tipo de transtorno mental. É um número absurdo, que nos mostra que há algo errado.
O que está errado nesse número de diagnósticos de transtornos mentais?
O que está sendo diagnosticado de fato? A tristeza, por exemplo, é algo normal do ser humano, mas as pessoas estão vendo a tristeza como depressão. As pessoas acham chique se autointitularem bipolares; é como se estivesse na moda dizer que se está com depressão, que se é bipolar. Isso prejudica aqueles que realmente possuem o transtorno.
Vou dar um exemplo: antigamente, o autismo estava presente em 0,5% da população. Hoje se fala em um caso a cada 84 pessoas. Isso é exagerado porque, depois que se mudou o diagnóstico para “diagnóstico de transtorno do espectro autista”, muitas pessoas passaram a pertencer a essa categoria. Acontece que muitas vezes, essas pessoas têm sintomas muito leves, que não atrapalham em nada suas vidas.
Como essa epidemia de diagnósticos afeta a saúde pública brasileira?
Ela é terrível porque é impossível pensar qualquer política de saúde pública que dê conta de metade da população com problemas de transtornos mentais. Há pessoas precisando de acolhimento, sim, mas quando se tem essa epidemia, os pacientes que possuem problemas reais não são percebidos, pois ficam imersos nesse mar de diagnóstico de transtornos: eles não são identificados e, consequentemente, ficam sem atendimento. Nenhum governo é capaz de tratar um povo que apresente metade da sua população com transtornos mentais.
Qual a importância de se trazer esse assunto para a reunião da SBPC?
É fundamental que as pessoas ligadas ao campo da ciência, e que estarão reunidas na 69ª Reunião da SBPC, tomem conhecimento dessa discussão. Ainda se fala pouco, no Brasil, sobre esse assunto, que atinge o mundo inteiro. Passamos por uma epidemia de diagnóstico, não de transtorno. Precisamos enfrentar o processo de medicalização, atuando na formação de profissionais de saúde e educação e na criação de políticas públicas voltadas para esse entendimento.