Artigo de pesquisadores da UFMG indica que uso indevido de anti-inflamatórios pode retardar reparação de tecidos
Com colaboração internacional, artigo mostra papel paradoxal da resposta inflamatória
Experimentos com camundongos demonstram que o uso de anti-inflamatórios deve ser controlado, considerando não apenas a quantidade e o tipo de droga, mas, sobretudo, o estágio em que se encontra a doença. “O mesmo medicamento que pode evitar dores, mal-estar e perda de função de órgão, se usado continuamente ou no auge do processo inflamatório, pode atrasar a reparação tecidual”, alerta o professor Gustavo Menezes, do Departamento de Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB).
Em artigo recém-publicado na revista Cells, o pesquisador alerta para a necessidade de entender a resposta inflamatória do organismo, que tem papel paradoxal – com momentos de destruição e outros de reparação de tecidos. O trabalho revela que há atraso na recuperação do órgão afetado quando a intervenção medicamentosa é feita em momento indevido.
Segundo Menezes, anti-inflamatórios são, na maioria das vezes, medicamentos sintomáticos: “Se os sintomas cessaram, não faz qualquer sentido manter o uso. Muitos pacientes continuam a tomar o medicamente prescrito mesmo sem dor ou inchaço, só porque já estão tomando ou por precaução, mas isso pode acarretar malefícios”, explica o pesquisador, lembrando que o estudo, que foi realizado utilizando modelos de lesão hepática, pode ser válido para outros órgãos, pois as células do sistema imunológico são muito parecidas nos diversos tecidos e órgãos do corpo.
Dupla face
Tida muitas vezes como mal a ser combatido a qualquer custo, a resposta inflamatória pode ter uma parte lesiva e desconfortável inicialmente, mas é necessária ao organismo para que ocorra o reparo tecidual. “É como uma cidade atingida por um míssil: para reconstruir, é preciso demolir as construções danificadas e limpar o terreno. Os neutrófilos, células de defesa que chegam rapidamente ao tecido inflamado, precisam acabar de digerir os tecidos mortos, para que o órgão possa se reconstituir. Assim, bloquear sua ação completamente e por longos períodos impede que o tecido se repare corretamente”, compara Menezes.
Ele explica que, quando um médico receita um anti-inflamatório a ser ingerido durante determinado número de dias e enquanto sentir dor, a recomendação “caso haja dor” é mais importante do que o número de dias. “Se houver dor por muito tempo, é necessário voltar ao médico, já que o processo não foi resolvido. Além disso, tomar por vários dias, sem dor, não traz benefícios e tem potencial malefício. É isso que o nosso trabalho mostra experimentalmente”, diz o professor.
Nos testes com animais, foi utilizado modelo de lesão hepática por paracetamol, em uma disfunção momentânea na qual ocorreria autorremissão. “Menos sintomas surgem quando a resposta é bloqueada antes. Mas, se não bloquearmos por longos períodos, a disfunção se resolve muito mais rápido, em pelo menos duas vezes menos tempo”, descreve. Ele explica que é necessário saber em que casos o anti-inflamatório deve ou não ser usado. E enfatiza que, exceto em doenças nas quais a causa principal do problema é o próprio processo inflamatório – como artrite e fibrose pulmonar –, os anti-inflamatórios são medicamentos que inerentemente tratam sintomas.
Além de investigar como o processo de resposta inflamatória pode ser multifacetado, o artigo mostra que a intervenção farmacológica não pode ser feita a qualquer momento. “Deve-se achar o ponto exato. Às vezes, em pacientes que já estão inflamados, bloquear sintomas pode não ser tão benéfico”, diz. Assim, em termos biológicos, o trabalho esclarece que a resposta inflamatória não tem apenas a face ruim e mostra que as intervenções que bloqueiam a inflamação são momento-dependentes.
Há casos, contudo, em que ocorre resposta exacerbada do organismo. “Temos vários trabalhos publicados nessa linha e uma patente de dois medicamentos que podem reduzir a resposta inflamatória, mas isso não significa que a inflamação em si seja ruim, o que não faria sentido do ponto de vista evolutivo”, alerta. “É provavelmente por saber inflamar que os seres humanos ainda estão na Terra. É uma resposta à agressão que foi mantida por quase todos os seres vivos, desde plantas, até mamíferos superiores”, enfatiza.
Gustavo Menezes comenta que a inflamação está presente em processos normais do organismo, como a ovulação e a filtração da urina. Por isso, o uso abusivo de anti-inflamatórios afeta a fertilidade, a formação da urina, o sistema nervoso central e o calibre dos vasos do coração. “Medicamentos são substâncias capazes de mudar comportamentos no organismo. A decisão de usá-los deve ser sempre resultado de uma equação entre o quanto de malefício e de benefício vão trazer”, pondera.
A pesquisa que gerou o artigo foi realizada pela equipe do Center for Gastrointestinal Biology, coordenado por Gustavo Menezes, e contou com a colaboração do professor Mauro Martins Teixeira, também da UFMG, e de pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), da Universidade de Calgary (Canadá) e do Harvard Medical School (EUA).
Artigo: Paradoxical Role of Matrix Metalloproteinases in Liver Injury and Regeneration after Sterile Acute Hepatic Failure
Publicação: Revista Cells
Autores: Débora Moreira Alvarenga, Matheus Silvério Mattos, Mateus Eustáquio Lopes, Sarah Cozzer Marchesi, Alan Moreira Araújo, Brenda Naemi Nakagaki, Mônica Morais Santos, Bruna Araújo David, Viviane Aparecida De Souza, Érika Carvalho, Rafaela Vaz Sousa Pereira, Pedro Elias Marques, Kassiana Mafra, Hortência Maciel de Castro Oliveira, Camila Dutra Moreira de Miranda, Ariane Barros Diniz, Thiago Henrique Caldeira de Oliveira, Mauro Martins Teixeira, Rafael Machado Rezende, Maísa Mota Antunes e Gustavo Batista Menezes.