Campanha de comunicação que buscou desacreditar estudos sobre as mudanças climáticas é tema de pesquisa premiada na UFMG
Autor da tese defende um olhar crítico da própria academia para compreender as lógicas que regem as práticas de Relações Públicas e seus impactos
O aumento da temperatura do planeta, causado pela emissão de dióxido de carbono, principalmente pela queima de combustíveis fósseis, é consenso entre 97% dos pesquisadores da área. Ainda assim, corporações do setor de energia dos Estados Unidos financiaram, por três décadas, campanha de relações públicas com intuito de influenciar a opinião pública e produzir controvérsias sobre esse fenômeno. Pesquisa de Daniel Reis Silva, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Comunicação e vencedora do Grande Prêmio de Teses, na categoria Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes, propõe desvendar a lógica da manufatura de incertezas que orienta essa campanha.
“Entender como e por que são criadas essas dúvidas sobre um tema de relevância social ajuda a compreender as disputas de poder do mundo contemporâneo, inclusive no território da ciência, e algumas vulnerabilidades que marcam os públicos”, sustenta Daniel Silva, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). “Desde o mestrado, eu me sentia incomodado com o tom funcional da maior parte das pesquisas acadêmicas sobre as relações públicas. Não deixa de ser uma linha válida, mas acredito que um olhar mais crítico da própria academia contribui para compreender quais lógicas regem as práticas de relações públicas e seus impactos na conformação de sentidos e nas disputas de poder do mundo contemporâneo”, justifica.
Na dissertação, o pesquisador trabalhou com uma prática muito em voga, o astroturfing, manifestação de públicos simulados que tenta criar apoios públicos onde eles não existem. Na tese, por sua vez, ele analisou um objeto mais amplo, uma campanha de manufatura de incertezas sobre a qual havia amplas evidências. “Era importante encontrar um objeto com uma consolidada base de denúncias, formada por livros e dados oriundos de iniciativas de vigilância civil, a partir das quais seria possível abrir essa ‘caixa preta’ da criação de dúvidas.”
Um dos grandes achados, segundo ele, foi perceber que a manufatura de incertezas funciona com base em uma série de apelos de desmobilização social. “A intenção é fomentar um cenário capaz de dificultar o posicionamento dos públicos sobre o tema. O apelo discursivo baseia-se na opinião e nos achados de uma minoria de cientistas, contrários à corrente hegemônica que comprova o aquecimento global antropogênico. A produção de dúvidas tenta enfraquecer e criar limites para os processos de formação e movimentação de públicos. E isso influencia a opinião pública”, avalia o professor.
Prática abusiva
Segundo Daniel Reis Silva, essa campanha que tentou desacreditar a tese do aquecimento global se distingue de outras iniciativas tradicionais. “O que está em jogo é a criação de um complexo emaranhado de estratégias de influência que, desafiando entendimentos éticos e atuando no limiar entre segredo e visibilidade, entrelaçam inúmeros atores, agências de relações públicas, corporações, think tanks ideológicos, front groups, agentes políticos, cientistas, jornalistas e personalidades mediáticas”, analisa. Esse emaranhado incluiu fabricação de petições, publicação de livros de “especialistas”, realização de seminários internacionais, distribuição de material didático para escolas de ensino fundamental e constante pressão na mídia para estimular a publicação de matérias capazes de estabelecer a controvérsia climática.
O foco recaiu nos chamados front groups e think tanks ideológicos, que são organizações criadas como grupos de fachada para defender um ponto de vista como se ele fosse aparentemente neutro. Silva conta que analisou documentos sobre alguns desses grupos, especificamente aqueles que apresentavam diretrizes estratégicas, e acompanhou as atividades do Heartland Institute – think tank norte-americano de políticas públicas de viés conservador e negacionista – nos últimos 20 anos.
“Conseguimos demonstrar que uma série de cientistas que negam o aquecimento global são pagos diretamente por grupos que, por sua vez, são financiados pela indústria de energia. Eles vão construindo uma rede de ocultação desses links e, quando entendemos essa lógica, percebemos tentativas claras de influenciar a opinião pública de maneira sutil, jogando o tempo todo com o segredo e com a visibilidade”, afirma o autor da tese.
A produção de cacofonia é, segundo Daniel Reis, a grande estratégia que comanda esse processo de influência. “Trata-se da produção e repetição incessante de dúvidas, que vão criando uma rede na qual impera uma lógica circular de manufatura de credibilidade, uma referenciação mútua constante por meio da qual apelos considerados como superados por outros cientistas acabam ganhando nova força na esfera pública”, afirma. “São práticas abusivas, extremamente avançadas e atuais, que, por muito tempo, não foram tratadas pela literatura de relações públicas”, conclui Daniel Reis Silva.
Tese: Relações Públicas, ciência e opinião: lógicas de influência na produção de (in)certezas
Autor: Daniel Reis Silva
Orientador: Márcio Simeone Henriques
Defesa em 2017, no Programa de Pós-graduação em Comunicação
(Texto de Teresa Sanches)