Dissertação de historiadora da UFMG revela experiências de negros expulsos do Brasil Colônia pela Inquisição

O tribunal da Inquisição surgiu na Idade Média para combater a propagação do culto a seitas religiosas na Europa. A partir do século 16, em Portugal, o regime forçou judeus e muçulmanos a se converterem ao catolicismo – prendendo, torturando ou exilando os considerados hereges, segundo julgamento da Igreja Católica.

“O que poucos sabem é que a Inquisição mantinha fiscais nas colônias, responsáveis por denunciar ao Tribunal do Santo Ofício a prática de rituais religiosos e de mediação com o sobrenatural, como os de matriz africana, professados por negros escravizados ou alforriados”, afirma a historiadora Thaís Tanure de Oliveira Costa, que rastreou a trajetória de negros degredados das colônias portuguesas. O destino dos condenados eram regiões fronteiriças de Portugal ou o trabalho forçado nas galés – barcos a remo usados na defesa do território.

O degredo para um lugar isolado era considerado uma pena duríssima, como ressalta Thaís Tanure. “Especialmente para os povos centro-africanos, o conceito de liberdade era muito ligado ao pertencimento, que envolvia, inclusive, o culto à ancestralidade”, afirma Thaís, autora de dissertação defendida em outubro de 2018 no Programa de Pós-graduação em História da UFMG.

A pesquisadora inventariou 59 processos, localizados em arquivos portugueses como o Nacional da Torre do Tombo, o Histórico Ultramarino, o Central da Marinha de Lisboa e a Biblioteca Nacional.

Desarticulação
Entre os personagens cujas trajetórias foram exploradas no trabalho, destacam-se os curandeiros Luzia Pinta, angolana escravizada e enviada para Sabará, e Domingos Álvares, beninense que viveu no Rio de Janeiro. Acusados de “superstição e pacto com o diabo”, ambos foram condenados, em 1744, a cumprir quatro anos de degredo em Castro Marim, no extremo sul de Portugal.

De acordo com a historiadora, Luzia e Domingos seguiram professando sua fé e promovendo rituais de cura em muitas cidades portuguesas, onde também foram perseguidos. “Mas, sem suas congregações, eles não puderam mais realizar seus ritos da mesma forma que faziam no Brasil, o que mostra o potencial do degredo de desarticular comunidades africanas”, observa Thaís.

Contradições
Como emblemáticos das contradições inerentes à pena de degredo, a autora menciona os casos de José Sérvulo e Francisco da Costa. O primeiro, desejoso de voltar para Portugal, onde tinha família, forçou a própria condenação ao adorar o diabo em frente a uma igreja em Olinda, no ano de 1595. Já no século 18, Francisco furtou premeditadamente uma hóstia consagrada em Belém, com o intuito de ser julgado pela Inquisição e se livrar do cativeiro. “É provável que a concepção de liberdade desses indivíduos fosse próxima da que temos hoje. Eles conheciam o dispositivo penal e agiram estrategicamente”, comenta a autora.

A extradição para a Europa também desagradava os proprietários, pois gerava prejuízos econômicos. “Encontrei seis cartas de senhores pedindo ressarcimento ao Santo Ofício”, relata Thaís, acrescentando que, naquele contexto, o amo era obrigado legalmente a arcar com os custos processuais e o sustento do cativo. “Do ponto de vista do Estado, o valor econômico, muitas vezes, foi preterido em favor de uma purificação da sociedade. Mas a Inquisição também tentou conciliar a penalização com o escravismo, perdoando alguns escravizados a pedido de seus senhores”, argumenta.

Para a historiadora, o regime da Inquisição deixou ecos que ainda repercutem nas esferas jurídica e social. “A sociedade ainda hoje busca se purificar socialmente excluindo quem é diferente”, ressalta. O trabalho, em seu entendimento, desperta reflexão sobre a resistência à marginalização. “Hoje, prevalecem outras formas de exclusão social dos afrodescendentes. As religiões de matriz negra ainda são apedrejadas no imaginário do povo. A violência policial contra os negros, embora não legitimada pela lei, é, de certa forma, aceita. O racismo institucionalizado persiste no Brasil por causa desses ecos”, avalia a autora.

Dissertação: “Nas terras remotas o diabo anda solto”: degredo, Inquisição e escravidão no mundo atlântico português (séculos XVI a XVIII)
Autora:  Thaís Tanure de Oliveira Costa
Orientadora: Adriana Romeiro
Defendida em 30 de outubro de 2018, no Programa de Pós-graduação em História da UFMG

(Texto de Matheus Espíndola)

Boletim UFMG 2.049