Em artigo, pesquisadores da UFMG criticam decisão de deslocar exemplares de peixe-boi brasileiro para a Ilha de Guadalupe
No Norte e Nordeste do Brasil vivem populações muito diferenciadas de peixe-boi, cuja história é marcada por uma controvérsia ambiental iniciada em 2015. Na época, surgiu um projeto de recuperação do peixe-boi marinho que foi extinto na ilha de Guadalupe, na região do Caribe. Para apoiar essa iniciativa, em uma medida muito questionada pelos estudiosos do assunto no país, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) pretendia enviar peixes-boi brasileiros para a ilha caribenha.
“Essa decisão ia de encontro a tudo o que a ciência mostrava, visto que a genética e a morfologia indicavam que a população dos peixes-boi brasileiros é completamente diferente da população que originalmente habitava a ilha de Guadalupe”, explica o professor Fabrício Rodrigues dos Santos, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG.
A discussão sobre o envio dos peixes-boi brasileiros para o Caribe está descrita no artigo Conservation issues using discordant taxonomic and evolutionary units: a case study of the American manatee (Trichechus manatus, Sirenia), que tem o professor Fabrício como um dos autores. Na publicação, o grupo de pesquisadores da UFMG e da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) fez novas análises sobre as populações de peixes-boi marinhos de várias regiões como as Guianas, a costa do Norte e Nordeste brasileiro, a Venezuela, a América Central, o México e os Estados Unidos.
O objetivo do grupo era demonstrar que essa espécie apresenta diferenças regionais e que também existe uma zona híbrida (onde vive o peixe-boi-amazônico), na área do estuário do Rio Amazonas, que separa duas populações distintas do Caribe e do Brasil.
Espécie sem igual
“Analisamos dados publicados em outros estudos, principalmente de nosso grupo de pesquisa, para confirmar e demonstrar que existem duas populações muito diferentes de peixes-boi marinhos. Observamos que nessa zona híbrida existem populações com genes das duas espécies de peixe-boi, do marinho e do amazônico, que separa a população de peixe-marinho do Nordeste do Brasil das outras populações que ocupam o Caribe, da Colômbia até a Flórida e as ilhas caribenhas. Nosso artigo lida com a questão dos usos científicos na conservação do peixe-boi, ou seja, fizemos um estudo de caso para ressaltar a importância da política de conservação sem negacionismo científico”, diz Santos.
O artigo demonstrou que o peixe-boi-marinho do Nordeste brasileiro é muito distante geneticamente do peixe-boi do Caribe, separados há algumas centenas de milhares de anos. Por isso, ele não deveria ser levado para a ilha de Guadalupe. Segundo a pesquisadora Camila Savicius de Lima, primeira autora do artigo, não é indicado deslocar exemplares brasileiros para o Caribe porque provavelmente estão adaptados a condições ambientais específicas. “Já se sabe que, no Brasil, os peixes-boi-marinhos têm suas particularidades, e isso precisa ser considerado quando pensamos no seu manejo”, defende.
O professor Fabrício Santos acrescenta que o artigo sobre os peixes-boi deve estimular a discussão científica ampliada para situações parecidas em outras espécies. “Observamos que muitas questões políticas às vezes se sobressaem aos dados científicos, então é importante mostrarmos, por meio da ciência, quais decisões devem ou não ser tomadas sobre o manejo de espécies com fins de conservação”, conclui o professor do ICB.
Artigo: Conservation issues using discordant taxonomic and evolutionary units: a case study of the American manatee (Trichechus manatus, Sirenia)
Autores: Camila Savicius de Lima, Rafael F. Magalhães e Fabrício R. Santos.
Publicado na Wildlife Research, em abril de 2021, e disponível on-line