Estudo da UFMG mostra que função imunológica predomina em fígado de recém-nascidos

Alteração da dieta, com introdução precoce de alimentos, pode interromper o processo de amadurecimento das células do sistema imune hepático

Até o momento do desmame, o fígado de recém-nascidos realiza quase exclusivamente funções imunológicas. A alteração da dieta, com introdução precoce de outros alimentos, pode interromper o processo de amadurecimento das células do sistema imune hepático e ativar antecipadamente a expressão das vias metabólicas desse órgão, tornando o indivíduo mais susceptível, ao longo da vida, a fatores como doenças medicamentosas. A descoberta está descrita em artigo publicado na última semana de agosto no Journal Hepatology, maior revista da área.

Coordenada pelo professor Gustavo Menezes, diretor do Center for Gastrointestinal Biology, localizado no Departamento de Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, a pesquisa também inova ao revelar diversos aspectos que diferenciam o fígado de bebês do de adultos. “Observamos que enzimas utilizadas para fazer diagnóstico de doenças hepáticas em crianças e em adultos podem não ter a mesma validade para recém-nascidos, simplesmente porque o fígado deles não as produz na mesma quantidade. Além disso, descobrimos que ao menos 30 diferentes genes metabólicos envolvidos no processamento de nossos alimentos são expressos em menor quantidade por recém-nascidos”, diz Menezes. Segundo o pesquisador, a literatura descreve bem esse órgão no embrião e no adulto, mas não havia trabalhos conclusivos sobre o fígado nos primeiros momentos após o nascimento. 

O grupo liderado por Gustavo Menezes também está desenvolvendo, em parceria com a empresa norte-americana Research Diets, pesquisa para sintetizar fórmulas parecidas com leite em pó que possam ser testadas em camundongos. “A tentativa não é imitar o leite materno, mas mitigar os efeitos da falta dele na maturação imunológica e metabólica do animal”, diz o pesquisador. Um dos objetivos da equipe é entender como os produtos encontrados no mercado, que não têm a mesma composição do leite materno, impactam a vida da criança.

Duas faces

O artigo tem como primeiras autoras Brenda Nakagaki e Kassiana Mafra, alunas do programa de Pós-graduação em Biologia Celular da UFMG. A equipe tem mostrado que o fígado funciona como se fosse dois órgãos: além da função metabólica, amplamente conhecida, exerce importante papel imunológico. “Elaboramos um método, com animais de laboratório, e acompanhamos o desenvolvimento hepático desde as primeiras horas de nascimento até a fase adulta”, explica o professor. Segundo ele, o fígado do recém-nascido é essencialmente imunológico – diversas funções metabólicas permanecem desligadas até que os animais sejam desmamados da mãe.

Os pesquisadores constataram que quase todos os tipos de células imunológicas estão em processo de maturação no fígado de um recém-nascido. “Acreditava-se que isso só acontecia somente no feto, mas observamos que ocorre também no camundongo recém-nascido e pelo menos até a metade da sua infância, enquanto outros órgãos, como medula óssea e baço, ainda não estão maduros. Ou seja, no nascimento, o fígado ainda participa do processo de maturação do sistema imune e vai se tornando um órgão metabólico ao longo da vida, sem perder a sua face imunológica”, descreve Gustavo Menezes.

Para acompanhar essa mudança, a equipe padronizou modelo de desmame prematuro em camundongos. “Achávamos que o fígado tinha um programa de amadurecimento próprio, independentemente de fatores externos. Contudo, no animal desmamado precocemente, o perfil metabólico hepático mudou completamente”, constata. O experimento indicou que o programa de maturação depende da amamentação, cuja interrupção causa desregulação, com possíveis consequências até a vida adulta. “Pode ser que a chave de algumas doenças em adultos esteja na interrupção desse processo de maturação”, supõe o professor.

Com relação ao tempo necessário à amamentação de humanos, Gustavo Menezes afirma que não há um padrão. “Existe um período já estabelecido, de seis meses, que é um tempo aceitável pela maioria dos profissionais. Nossos dados também nos sugerem considerar agora quanto tempo essa criança ficou no útero. Hoje sabemos que isso também deve ser estudado. O período adequado de aleitamento pode ser variável, levando em consideração inclusive o tempo de gestação”, enfatiza.

O pesquisador explica que o modelo em camundongos não traz elementos para esse cálculo, devido à dificuldade em estabelecer relação de idade com humanos, já que esses animais experimentais atingem a vida adulta quatro semanas após o nascimento. “É muito grande também a diferença em tempo gestacional, que é de quase sempre 21 dias em camundongos, enquanto a ciência ajudou os humanos a ter uma flexibilidade gestacional muito maior. E na nomenclatura, todos somos recém-nascidos desde o primeiro dia após o parto”, compara.

O grupo liderado por Menezes também vai gerar modelo de partos prematuros em animais, com o intuito de entender o quanto o bebê prematuro precisa ser mais bem cuidado. “Queremos sistematizar o estudo da maturação imunológica e metabólica no início da vida, usando modelos reprodutíveis. Temos percebido que esse assunto envolve muita especulação, tudo parece muito óbvio à primeira vista, mas continuamos a ter problemas”, pondera Gustavo Menezes.

Pesquisa em humanos

Ao estudar fígado, medula óssea e baço em modelos animais recém-nascidos, Menezes e sua equipe constataram que o fígado é o maior órgão imune destes animais. Para observar se o quadro era o mesmo em humanos, o pesquisador estabeleceu parceria com o Hospital das Clínicas da UFMG e analisou biópsias de pacientes – recém-nascidos, crianças e adultos – que morreram de problemas não hepáticos. Ao fim, observou uma similaridade enorme entre amostras de humanos e camundongos. “Eram lâminas que estavam guardadas, ou seja, não fizemos um estudo invasivo em seres humanos”, anota o professor, ressaltando que a análise de materiais humanos validou a pesquisa em camundongos.

Menezes afirma que a plataforma criada em seu laboratório especialmente para essa pesquisa oferece condições para que diferentes grupos estudem a maturação do fígado e de outros órgãos importantes. “O artigo comprova que a plataforma é válida para predizer futuros problemas hepáticos a partir de mudanças pontuais na alimentação, que pode ser avaliada em termos de constituição, tempo e conteúdo microbiano”, enfatiza.

Ele destaca que agora há condição experimental de ajudar órgãos públicos a entenderem que cuidar bem de uma criança é mais inteligente não só no aspecto humano, mas também financeiro. “Um adulto saudável é economicamente mais produtivo e usa menos o serviço público de saúde”, comenta Gustavo Menezes, ressaltando a importância de mudar o direcionamento de políticas públicas para estimular e dar condições ao aleitamento materno e à nutrição infantil adequada.

Em sua opinião, reside na pesquisa científica a esperança para as crianças que não podem ser amamentadas, especialmente no caso de prematuros, em que mãe ainda não teve tempo de maturar a glândula mamária. “A única opção para tentar mimetizar ao máximo a amamentação vem em pesquisa. As fórmulas existentes não substituem o leite materno”, garante. Gustavo Menezes destaca ainda a importância do trabalho desenvolvido pelo seu grupo, como “ciência feita no Brasil e aplicável em diferentes áreas, como a sociologia, a imunologia e a enfermagem”.

Plasticidade hepática 

O fígado está posicionado no corpo entre o intestino – que é colonizado por uma enorme microbiota – e a circulação sanguínea, que, em tese, é livre de micro-organismos. Como explica Gustavo Menezes, os nutrientes absorvidos no estômago e no intestino são direcionados para o fígado, não apenas para serem metabolizados, mas para que seu conteúdo microbiano seja filtrado antes de circular pelo corpo. “Dificuldades hepáticas não causam somente problemas metabólicos. Um paciente com doença hepática tem suscetibilidades a infecções, porque o fígado é um importante órgão imune”, justifica o pesquisador.

É exatamente no início da vida, na fase de aleitamento materno, devido à sua extrema plasticidade, que esse órgão se prepara para manter as duas funções ao longo da vida. “O ambiente de desafio imunológico que um recém-nascido encontra é variável até mesmo dentro da mesma casa. Por isso, é importante que esse sistema seja plástico, capaz de se adaptar, o que provavelmente não seria possível se logo no início da vida já precisasse metabolizar macromoléculas em alta escala, alimentos pouquíssimo processados, como carnes, frutas e fibras”, diz Gustavo Menezes, destacando que “a dieta na criança pode definir o futuro do adulto”.

Segundo ele, agora é possível indicar com precisão os impactos, na vida adulta, das mudanças na dieta da infância. “Um sistema imune deficiente está sujeito não só a infecções, mas também a câncer, pois uma das principais causas dessa doença são falhas na resposta imune a células tumorais. Doenças autoimunes, em contrapartida, nas quais o sistema imune passa a reagir contra o próprio organismo, também estão relacionadas com a sua maturidade ou eficiência imunológica”, informa.

Outra pesquisa prevista pelo grupo é o estudo da mudança entre as fases em que o feto se alimenta pelo cordão umbilical e a etapa imediatamente após o nascimento. “Queremos entender como o útero prepara aquele ser para a vida externa”, comenta o pesquisador, lembrando que mecanismos alimentares como o leite para os mamíferos e o saco vitelino para os peixes existem não apenas para garantir alimentação nos primeiros momentos da vida após o nascimento. “É provável que isso ocorra para que outros fatores sejam priorizados, como os aspectos imunológicos nesse início de vida”, pondera.

Artigo:  Immune and Metabolic Shifts During Neonatal Development Reprogram Liver Identity and Function
Autores: Brenda Naemi Nakagaki, Kassiana Mafra, Érika de Carvalho, Mateus Eustáquio Lopes, Raquel Carvalho-Gontijo, Hortência Maciel de Castro Oliveira, Gabriel Henrique Campolina-Silva, Camila Dutra Moreira de Miranda, Maísa Mota Antunes, Ana Carolina Carvalho Silva, Ariane Barros Diniz, Débora Moreira Alvarenga, Maria Alice Freitas Lopes, Viviane Aparecida de Souza Lacerda, Matheus Silvério Mattos, Alan Moreira Araújo, Paula Vieira Teixeira Vidigal, Cristiano Xavier Lima, Germán A.B. Mahecha, Mila Fernandes Moreira Madeira, Gabriel Rocha Fernandes, Raquel Ferraz Nogueira, Thais Garcias Moreira, Bruna Araújo David, Rafael Machado Rezende, Gustavo Batista Menezes
Disponível aqui.

Assessoria de Imprensa da UFMG

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