Estudo UFMG: ruas comerciais podem servir como respiro do caos urbano
Pesquisa indica atributos que contribuem para a qualidade de vida nas grandes cidades
O ritmo das grandes cidades tem sido um desafio para a saúde mental de seus moradores, que são constantemente expostos à poluição sonora, visual e atmosférica. Partindo deste cenário, um grupo de pesquisadores, com participação da UFMG, decidiu investigar se as ruas comerciais das grandes cidades têm potencial para melhorar a qualidade de vida das pessoas, possibilitando momentos de relaxamento e desestresse do corpo e da mente em meio ao caos urbano.
As ruas comerciais são aquelas que, apesar de contarem com residências, têm uso predominantemente comercial, com lojas, bares, cafés, restaurantes, livrarias e serviços. “São locais aonde as pessoas normalmente vão para fazer compras, se alimentar, se entreter, relaxar e encontrar amigos”, explica a professora Paula Barros, do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG e uma das autoras do artigo The restorative potential of commercial streets, que traz as conclusões da pesquisa publicada na revista Landscape Research. O estudo foi desenvolvido em parceria com outros três pesquisadores da Universidade de Cincinnati, nos Estados Unidos, e das universidades de Sheffield e de Manchester, na Inglaterra.
Barros explica que a ideia de ambientes restauradores advém da chamada Teoria da Restauração da Atenção, desenvolvida pelos psicólogos Rachel e Stephen Kaplan. "Essa teoria postula que qualquer atividade que realizamos demanda foco, o que requer atenção dirigida. Como essa atenção é um recurso esgotável, é importante que seja restaurada. Quando isso não acontece, ficamos irritados e estressados. A arquitetura, então, aparece como ferramenta para ajudar a restaurar a capacidade humana de dirigir a atenção nas grandes cidades”, diz.
Atributos
A professora explica que há determinados ambientes cujas características possibilitam a restauração da capacidade de dirigir atenção. Esses lugares apresentam quatro atributos: fascinação, afastamento, extensão e compatibilidade: “Já é sabido que certos ambientes naturais, como florestas e parques, podem funcionar como ambientes restauradores, mas e outros tipos de espaços abertos, como praças e ruas? Como certas ruas comerciais são utilizadas cotidianamente como local de lazer e socialização por um número significativo de pessoas, desenvolvemos uma pesquisa para explorar o potencial restaurador desses locais segundo a perspectiva dos seus frequentadores".
A fascinação é o primeiro atributo de um local com potencial restaurador. Trata-se da capacidade de atenção involuntária do indivíduo, ou seja, aquela atenção que ocorre sem esforço, quando observamos uma flor bonita em um canteiro, por exemplo. O segundo atributo, o afastamento, refere-se ao deslocamento do indivíduo no tempo ou no espaço, sem que ele precise sair do local que utiliza cotidianamente. “Esse atributo está presente naqueles lugares que, por exemplo, nos fazem reviver momentos vividos na nossa infância. Por alguns segundos, voltamos no tempo”, explica Barros.
A professora da Escola de Arquitetura explica que a compatibilidade, o terceiro atributo, está relacionado ao atendimento de demandas pessoais. “Se a pessoa quer relaxar, por exemplo, aquele local deve possuir características que possibilitem isso, como um banco para que ela se sente e descanse ali. Esse atributo ocorre quando o local é compatível com o desejo e o interesse do indivíduo”. Último atributo considerado pelos pesquisadores, a extensão se relaciona à ordenação e coerência do ambiente. “Um local apresenta este atributo quando é ordenado sem ser monótono”, aponta a pesquisadora.
Configurações espaciais restauradoras
Os quatro atributos foram observados em quatro ruas da Savassi – Tomé de Souza, Paraíba, Alagoas e Fernandes Tourinho –, na capital mineira, e em três ruas da região metropolitana de Boston, nos Estados Unidos. Foram entrevistadas 101 pessoas em Belo Horizonte, em 2017 e 2018, dando continuidade às 51 entrevistas que haviam sido feitas em Boston em 2005. Além das entrevistas, os pesquisadores analisaram fotos das ruas postadas no website Flickr, rede de compartilhamento de imagens, de 2003 a 2018.
A análise das entrevistas e das imagens mostrou que há determinadas configurações físico-espaciais que tendem a ser percebidas como restauradoras por quem usa aqueles espaços cotidianamente. A primeira delas foi chamada pelos pesquisadores de configuração interessante e faz referência às vitrines das lojas que são decoradas com flores, plantas ou objetos. “As entrevistas mostraram que, as vitrines dos comércios dessas ruas que eram percebidas como capazes de promover a restauração, evocavam um senso de fascinação por quem passava por elas. As pessoas disseram que essas vitrines contribuíam para tornar a experiência urbana mais interessante”, conta Barros.
Outra dimensão associada à capacidade de diminuição do estresse foi denominada de configuração verde. “Um exemplo é a esquina em frente à Livraria Ouvidor, na Savassi. Ali, o elemento verde é predominante, e os entrevistados contaram que esse espaço funcionava como respiro da correria urbana, trazendo relaxamento e restauração. Muitos se referiram a essa esquina como pracinha”, diz Barros.
Terceiros lugares
Outra configuração observada no estudo e presente nas ruas comerciais consideradas restauradoras é a configuração hospitaleira, marcada pelas cadeiras, mesas, floreiras e outros elementos adjacentes a bares, restaurantes e cafés. Segundo Barros, são os locais aonde as pessoas vão para encontrar amigos e observar o movimento da cidade, sendo também chamados de “terceiros lugares”. “Segundo o sociólogo Oldenburg, terceiros lugares são ambientes entre a casa e o trabalho, aonde vamos para encontrar amigos e socializar. Percebemos que, nas ruas consideradas, os estabelecimentos que apresentavam essa configuração eram pequenos comércios de propriedade de um negociante local. Os entrevistados afirmaram que essa configuração evoca um senso de pertencimento. São estabelecimentos com importância social e comunitária.”
A quarta configuração recebeu o nome de bem cuidada. Aqui, os entrevistados fizeram referência aos locais que consideram bem cuidados, mas não apenas no âmbito das fachadas e calçadas. “São os locais que passam uma sensação de carinho com a cidade. Ocorre quando o comerciante cuida do seu estabelecimento como se fosse uma extensão da sua casa”, explica a pesquisadora.
Trabalho conjunto
Paula Barros acrescenta que o estudo deixou claro que o potencial restaurador das ruas comerciais deve ser buscado por uma ação conjunta entre poder público, arquitetos, comerciantes e comunidade. A pesquisadora conta que as especificidades das ruas de Belo Horizonte e Boston apareceram nas entrevistas, mas que a presença dos quatro atributos nas ruas – fascinação, afastamento, extensão e compatibilidade – é fator importante para a restauração em ambas as cidades.
“É claro que há diferenças nas realidades das duas cidades. No caso de Boston, por exemplo, a monotonia das fachadas foi apontada pelos participantes como algo que deveria ser mudado. No Brasil, os entrevistados apontaram, como barreira para a restauração em ruas comerciais, a sensação de insegurança causada por uma variedade de fatores como o intenso fluxo viário, falta de manutenção das calçadas e má iluminação em alguns trechos. No caso brasileiro, ficou claro que a falta de cuidado diminui muito o potencial restaurador das ruas comerciais", argumenta Paula Barros.
O estudo também mostrou que espaços ocupados têm maior potencial de restauração, uma vez que a ocupação traz a sensação de segurança. “Alguns entrevistados comentaram que a presença de moradores de rua não é um problema. O problema é a ausência de pessoas nos trechos escuros e mal iluminados. Percebemos que a presença de pessoas de todos os tipos em um ambiente urbano é um atrativo. Aparentemente, a heterogeneidade social torna a experiência mais rica e interessante”, conclui Barros.
Artigo: The restorative potential of commercial streets
Autores: Paula Barros, Vikas Mehta, Paul Brindley e Razieh Zandieh
Publicado no periódico Landscape Research e disponível no Portal de Periódicos da Capes