Grupo da UFMG identificou mecanismo que apaga a memória do uso de cocaína
Estudo pode abrir caminho para tratamento contra a dependência
Pesquisadores do ICB identificaram um mecanismo que controla no cérebro os efeitos da cocaína, droga de abuso que mais causa dependência e é considerada a mais deletéria para o cérebro e para todo o organismo. Esse processo, cujo funcionamento ainda não é conhecido, mostrou-se capaz de apagar a memória do consumo da droga em animais experimentais. O passo a passo e as conclusões da investigação – que podem servir de base para o desenvolvimento de medicamento para tratar o uso da cocaína, ou seja, para diminuir a vontade de usar a droga – estão descritos em artigo recém-publicado no British Journal of Pharmacology.
“O cérebro de um usuário de drogas guarda as memórias relacionadas ao uso. Por exemplo, mesmo depois que um alcoolista deixa de beber, passar em frente a um bar reacende o desejo pela bebida. O que constatamos é que, ao agir sobre uma parte do neurônio que não é aquela sensível às substâncias que causam os efeitos negativos das drogas, anulamos a memória do uso”, afirma o professor Fabricio Moreira, um dos coordenadores, com a professora Daniele Aguiar, do Laboratório de Neuropsicofarmacologia do ICB.
De acordo com Moreira, a cocaína age sobre o mesmo sistema neural afetado pela maconha. E os neurônios produzem substâncias semelhantes ao THC (tetraidrocanabinol), responsável pelos efeitos da maconha. São os endocanabinoides, muito importantes para modular desejo e motivação e que são liberados antes das ações que geram satisfação, como comer e usar drogas. “Medicamentos que impedem a ação dos endocanabinoides já foram utilizados, por exemplo, contra a obesidade, uma vez que reduzem a vontade de comer. Mas foram banidos devido a seus efeitos adversos”, exemplifica o professor.
Fabricio Moreira explica que essas substâncias atuam nas células por meio de duas estruturas específicas – receptores 1 e 2 – que têm funções contrárias com relação aos efeitos da maconha e da cocaína. “Quando o THC chega ao cérebro, ele se liga ao receptor 1. Logo, agir sobre esse receptor com um medicamento de ação semelhante ao da droga não é boa estratégia. Nossa ideia é trabalhar com o receptor 2 para reduzir o efeito da cocaína sem causar os danos vinculados ao receptor 1.”
O dia seguinte
De acordo com o professor do ICB, a pesquisa foi iniciada há cerca de cinco anos e envolveu 13 professores e estudantes de pós-graduação – rendeu uma tese e uma dissertação. A investigação partiu da hipótese das funções opostas dos endocanabinoides, dependendo do receptor em que eles agem. “Havia estudos tratando dos receptores, separadamente. Juntamos as peças e detectamos interações recíprocas desses receptores”, diz.
Os pesquisadores punham os animais de laboratório num dos compartimentos de uma caixa e injetavam cocaína, seguindo os padrões de equivalência de efeitos em humanos. No dia seguinte, os mesmos animais não recebiam a droga e, ao serem levados à caixa, procuravam o lado em que estavam no dia anterior. “Passamos, então, a administrar substâncias sintéticas, produzidas especificamente para testes nos receptores neuronais, ligando-as ao receptor 2, e essa ação apagou a memória da droga nos animais”, conta Fabricio Moreira.
Ao método comportamental, que testou a memória, a pesquisa aliou o método histológico, ou celular, com o objetivo de medir em que região do cérebro as substâncias agem. Segundo Fabrício Moreira, sempre que é ativado, o neurônio sintetiza proteínas, e essa atividade pode ser detectada. “Importa saber em que parte do cérebro a ação acontece para entender melhor como o processo se dá”, comenta o pesquisador.
Os próximos passos, a propósito, incluem investigar o interior da célula, com a participação de outros laboratórios. “Queremos descobrir que proteínas são modificadas. Também é preciso saber se o que observamos sobre a cocaína se aplica a outras drogas, como a nicotina e o álcool”, conclui Moreira, que tem realizado ainda, no Laboratório de Neuropsicofarmacologia, estudos sobre o sistema endocanabinoide que visam ao tratamento de males como a epilepsia e os transtornos de ansiedade.
Artigo: Opposing roles of type-1 and type-2 cannabinoid receptors in cocaine stimulant and rewarding effects
Autores: Pedro Gobira, Ana Oliveira, Julia Gomes, Vivian da Silveira, Laila Asth, Juliana Bastos, Edleusa Batista, Ana Issy, Bright Okine, Antonio de Oliveira, Fabiola Ribeiro, Elaine Del Bel, Daniele Aguiar, David Finn, Fabrício Moreira
Publicação: British Journal of Pharmacology, em 12 de agosto de 2018