Historiadora descreve processo que envolve guerra de narrativas e criação de políticas públicas relacionadas ao prédio do Dops-MG
No dia em que o Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG) foi extinto, em 1989, representantes de movimentos sociais reuniram-se na porta do prédio da Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, para promover o fechamento simbólico da instituição. Diretamente vinculado a denúncias de violações de direitos humanos durante a ditadura civil-militar, iniciada em 1964 e que duraria 21 anos, o Dops tornava-se, então, o foco de uma disputa por memória que opõe ex-presos políticos e familiares de dissidentes mortos e desaparecidos e agentes que negam práticas como o encarceramento e a tortura.
Esse processo foi estudado pela historiadora Débora Raiza Rocha, que concluiu mestrado em dezembro do ano passado, na Fafich. Segundo ela, após 1985, já na vigência da democracia, o prédio seguiu abrigando violações aos direitos humanos.
“Sempre houve uma guerra de narrativas, e as estratégias de negação variavam da limitação do acesso à informação à ocultação de provas, passando por mudança de pautas de debate e pela utilização de eufemismos na referência aos episódios denunciados”, explica Débora Raiza.
Segundo Débora, a disputa prossegue até os dias de hoje. Já nos anos 1990, houve uma série de ações de memorialização. Primeiro, os documentos do órgão foram transferidos para o Arquivo Público Mineiro; mais tarde, esse acervo – composto de 98 rolos de microfilmes e cerca de 250 mil imagens – foi aberto à consulta de qualquer cidadão. O arquivo foi organizado pelo Departamento de História da UFMG, sob coordenação do professor Rodrigo Patto de Sá Motta.
No ano 2000, foi promulgada a lei que criava o Memorial dos Direitos Humanos, destinado a ocupar o prédio do antigo Dops. Em 2013, foi instalado, em frente ao edifício, um monumento em homenagem aos mineiros mortos. No mesmo ano, o prédio foi tombado como patrimônio cultural pelo município de Belo Horizonte, e, dois anos depois, o estado tomou iniciativa semelhante. As ações de tombamento, ressalta a pesquisadora, resultaram de demanda do Ministério Público, da Comissão da Verdade em Minas Gerais e de segmentos da sociedade civil.
“O Dops mineiro é caso emblemático no campo da patrimonialização. Tradicionalmente, os tombamentos atingem bens como igrejas e cidades dos períodos colonial e imperial, mas, nesse caso, o conceito é ampliado, valorizando uma memória que não engrandece a história oficial da nação”, comenta Débora Raiza Rocha.
Edifício de contrastes
O edifício do antigo Dops, inaugurado em 1958, tem concepção modernista do arquiteto Hélio Ferreira Pinto. “A linguagem estética, de contestação ao tradicionalismo e ao conservadorismo, contrasta com o uso da edificação para a repressão política”, diz Débora.
Segundo ela, o prédio, que constitui o que se denomina lugar, pleno de sentidos simbólicos e políticos, produziu lugares de memória – o acervo, o monumento e o memorial. Juntos, eles formam um território de memória.
Além dos documentos do Arquivo Público, a pesquisadora mergulhou, entre outras fontes, em jornais, publicações da Assembleia Legislativa e nos dossiês de tombamento. Recorreu ainda a teóricos como o historiador francês Pierre Nora, que inaugurou o conceito de lugares de memória, a historiadora argentina Elizabeth Jelin (memorialização) e a antropóloga Ludmila Catela, que reflete sobre o papel das memórias na constituição do território e no acionamento das disputas.
Como escreve a autora, “a perspectiva de legitimar o presente pelo passado e para o futuro se estabeleceu como tônica nas ações relacionadas ao Dops-MG. Essas ações significaram, para os grupos demandantes, vencer a ‘guerra de narrativas’ e a batalha pela memória, alcançando, de alguma maneira, a legitimidade da palavra e o domínio da verdade dos fatos”.
O prédio está liberado para a implantação do Memorial dos Direitos Humanos e chegou a ser visitado, mesmo antes das obras de restauração e de adequação ao projeto museológico.
Dissertação: Disputas em torno do Dops/MG: Guerra de narrativas, memorialização e patrimonialização (1989-2018)
Autora: Débora Raiza Carolina Rocha Silva
Orientadora: Miriam Hermeto
Defesa: dezembro de 2018, no Programa de Pós-graduação em História