Pesquisa da Fafich UFMG encontra documentos que revelam islamização na Senegâmbia anterior ao século 18

Sobre a presença do Islã na África Ocidental, ao longo dos últimos séculos, predominam as correntes historiográficas inglesa e francesa. Fontes em língua portuguesa têm sido pouco exploradas, embora haja material farto e relevante nos arquivos de Portugal, sobretudo da primeira metade do século 17. Documentos dessa época revelam, por exemplo, que as revoluções que levaram os muçulmanos ao poder no século 18, na região do Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, foram potencializadas por forte movimento de pregação islâmica desde os anos 1500.

Esse caminho de pesquisa foi explorado, com alto grau de ineditismo, por Thiago Henrique Mota Silva, que defendeu tese em março, na pós-graduação em História. “O processo de educação islâmica forneceu matéria social e legitimidade para as chamadas jihads do século 18. A população já conhecia bem o Islã e apoiou a tomada do poder. Estar sob leis muçulmanas era importante para os fiéis”, comenta o pesquisador, que foi orientado por Vanicléia Santos, da Fafich, e por José Horta, da Universidade de Lisboa.

De acordo com Thiago Mota, o principal elemento de articulação do Islã na Senegâmbia (assim ficou conhecido o sistema comercial delimitado pelos rios Senegal e Gâmbia, que se estendia até o norte da Serra Leoa), naquele período, eram as escolas corânicas. Segundo cronistas, as pessoas eram alfabetizadas em árabe com base na leitura do Alcorão, o livro sagrado islâmico. “Processos da Inquisição de Lisboa, contra grupos escravizados convertidos ao catolicismo, por sua vez, confirmam também que essas pessoas mantinham rituais como jejum e orações. Ou seja, as informações obtidas dos tribunais europeus batem com as fontes descritivas da África”, diz o pesquisador.

A propósito dos rituais religiosos, ao contrário do que afirmam as fontes tradicionais, Thiago Mota encontrou evidências de que se praticavam na região os Cinco Pilares do Islã: a profissão de fé, que reconhece a unidade de Deus e Maomé como seu profeta, orações em direção a Meca cinco vezes ao dia, o cumprimento do jejum no mês do Ramadã, a concessão de esmolas como instrumento de coesão social e a peregrinação a Meca ao menos uma vez na vida.

“Muitas vezes, o Islã africano é tratado como particular e regional. Mas grande parte dos pregadores estava em constante movimentação e em contato com o que acontecia no mundo islâmico. O Islã africano era tão regional quanto qualquer experiência religiosa. Traços culturais são sempre incorporados à fé de determinado povo”, diz o pesquisador. Thiago explica que o Islã surgiu na Península Arábica no século 7, expandindo-se já no século seguinte para o norte da África e para a área do Oceano Índico. Nos séculos 10 e 11, a religião atingiu o oeste da África, levada pelas caravanas de mercadores de produtos como ouro, sal, marfim e escravos.

Cartagena e Berlim

Thiago Mota analisou trabalhos publicados no Brasil, obras portuguesas, inglesas e francesas e documentos dos processos movidos pela Inquisição contra povos como Wolof, Mandinga e Fula, guardados na Torre do Tombo, em Lisboa. Além disso, acessou documentos do Arquivo Histórico Ultramarino e da Biblioteca Nacional de Portugal, ambos também na capital portuguesa. No Institut Fondamental d’Afrique Noire (Senegal) e no National Centre for Arts and Culture (Gâmbia), ele encontrou fontes de história oral, coletadas ao longo do século 20, que são consistentes com o material escrito.
O pesquisador trabalhou ainda sobre documentos procedentes de Cartagena de Índias, na Colômbia, que foi por muito tempo o principal porto para a região do Caribe. Por lá, chegavam da Senegâmbia grupos escravizados, e as fontes contêm testemunhos de que essas pessoas praticavam a religião islâmica, desde a África. Outro caminho da pesquisa levou Thiago Mota a peças de arte em marfim: no Museu Etnográfico de Berlim, ele encontrou saleiros com cenas esculpidas que mostram pessoas segurando livros e o aluá, prancheta de madeira na qual as crianças aprendiam a escrever, reproduzindo trechos do Alcorão.

Os séculos 16 e 17, no Senegal e na Gâmbia, não foram marcados por conflitos violentos motivados pelas diferenças de religião. “Os grupos locais, os muçulmanos e os jesuítas disputavam o poder simbólico sobre a eficiência de rituais. Por exemplo, no caso das bênçãos destinadas à proteção dos rebanhos sedentos contra os crocodilos, nas margens dos rios, os ritos eram basicamente os mesmos, mas o poder era atribuído ora a uma, ora a outra divindade”, diz Thiago Mota, que teve seu percurso de estudos do doutorado financiado pela Fapemig.

Ele acrescenta que outra prova da força da presença do Islã na Senegâmbia já nos anos 1500 e 1600 é a história das missões de jesuítas e franciscanos na região. “Os relatos disponíveis dão conta de que o principal impedimento para a expansão do catolicismo foi justamente o Islã. Os povos locais já conheciam algo da narrativa comum ao cristianismo e ao Islã, com base nas lições do Alcorão, mas não estavam dispostos a mudar sua fé. Os missionários foram obrigados a migrar para o sul.”

Tese: História atlântica da islamização na África Ocidental – Senegâmbia (séculos XVI e XVII)
Autor: Thiago Henrique Mota Silva
Orientadores: Vanicléia Santos (UFMG) e José Horta (Universidade de Lisboa)
Defesa em março de 2018, no Programa de Pós-graduação em História

Itamar Rigueira Jr. - Boletim UFMG 2.021

Fonte

Assessoria de Imprensa da UFMG