Pesquisa na UFMG analisa experiências emancipatórias de pessoas com sofrimento mental
O programa Louca sintonia, produzido e veiculado pela Rádio UFMG Educativa, e o coletivo de teatro Sapos e afogados foram objeto de estudo de tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia que analisou o potencial dessas experiências como estratégias de empoderamento de cidadãos em sofrimento mental. Em pesquisa participativa, a professora Regina Céli Fonseca Ribeiro, do Departamento de Terapia Ocupacional da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO) da UFMG, procurou identificar, nas duas iniciativas, princípios essenciais da atenção psicossocial, como autonomia, protagonismo e militância.
"Conseguimos perceber, durante o estudo, o potencial da experiência radiofônica na luta contra o estigma, ao fazer circular um outro olhar, possibilitar reflexões e provocar discussões a respeito da loucura e da questão da militância, que também é uma estratégia de empoderamento", comenta a autora. Segundo ela, os participantes usam suas vozes para, com base nas próprias experiências de sofrimento, estimular a reflexão do ouvinte sobre o estigma relacionado à loucura e suas consequências.
Para Regina Ribeiro, autora da tese Experiências autonomistas em saúde mental: possibilidades de empoderamento, "os depoimentos gravados, as letras das músicas compostas pelos usuários, os relatos de experiência e as entrevistas ganharam contornos de narrativas pessoais da vida com transtorno mental, reconhecidas como uma das estratégias de empoderamento importantes no processo de recuperação em saúde mental".
A pesquisadora explica que as duas experiências propiciam ao participante a oportunidade de refletir e construir sua própria concepção de mundo, o que pode levar a uma transformação. "Autonomia e empoderamento parecem sinônimos, mas este último conceito é consequência do primeiro e pressupõe emancipação. Entendo que desenvolver uma práxis reflexiva é o primeiro passo para que o sujeito desenvolva autonomia", pondera a professora, destacando que o teatro e o rádio oferecem essas possibilidades.
Produção coletiva e horizontalizada
A oficina de rádio surgiu em 2014, como proposta de disciplina curricular do curso de graduação em Terapia Ocupacional, à época coordenada pela professora Regina Ribeiro, no Centro de Convivência São Paulo. O serviço comunitário substitutivo ao manicômio funciona no bairro da região Nordeste de mesmo nome e é referência na militância da saúde mental na capital mineira. "Negociando com a gerência do serviço, chegamos à ideia de propor uma oficina feita pelos usuários", relembra a professora.
O programa foi imediatamente acolhido pela UFMG Educativa, que, segundo a professora, tem um formato de trabalho muito parecido com a proposta da disciplina – horizontalizado, com produção coletiva e colaborativa. O primeiro programa foi ao ar em dezembro daquele mesmo ano. Até hoje, em oficinas semanais, os usuários do serviço têm a liberdade de falar, cantar, produzir e realizar entrevistas. Eles também participam da seleção e da edição do material, que é veiculado no fim de cada semestre, em programa com uma hora de duração.
Ao iniciar o doutorado, Regina Ribeiro se afastou da coordenação e "entrou na experiência", na modalidade pesquisa-intervenção. Além do Louca sintonia, a autora analisou o trabalho do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados, coletivo autônomo cujos atores são cidadãos em sofrimento mental. "No grupo de teatro pude ver o potencial e o processo de produção de autonomia em relação ao funcionamento do coletivo e ao processo de criação", diz a pesquisadora, que utiliza o ‘filósofo da autonomia’, Cornelius Castoriádis, como uma de suas principais referências ao estudar o conceito.
Acompanhando o processo de criação do espetáculo Caminho, do Sapos e Afogados, foi possível perceber que a autonomia "se encontra com a criação, na criação e em criação", enfatiza a pesquisadora. Ela ressalta que a autonomia individual se produz "em ato e no ato criador", traduzindo-se em autonomia coletiva a cada espetáculo que entra em cena, "transparecendo para o público como competência, qualidade artística e empoderamento".
No processo de criação teatral, diz Regina Ribeiro, o que era da ordem do delírio atravessava as cenas, mas não se cristalizava como sintoma, traduzindo-se em ato criativo capaz de produzir encantamentos.
Conexões e caminho
Um dos desdobramentos do Louca sintonia foi a criação do programa Conexões ao vivo, que a Rádio UFMG Educativa veicula anualmente durante a Semana de Saúde Mental, em comemoração à Luta Antimanicomial. Em 2015, o Conexões foi realizado e transmitido ao vivo, do centro de convivência, com a participação de professores da UFMG e de convidados, como o psiquiatra italiano Ernesto Venturini.
O espetáculo Caminho, cujo processo de criação foi acompanhado por Regina Ribeiro, apresentado na abertura da Semana de Saúde Mental da UFMG de 2016, "marcou os espectadores de tal forma que seus diálogos e cenas foram lembrados em vários momentos da Semana, catalisando muitas discussões", relembra a pesquisadora.
As falas dos atores, como "eu preciso de alguém que me olhe nos olhos" e "somos feitos de carne", nomearam grupos de trabalho durante o evento e provocaram reflexões, por exemplo, sobre a solidão, abordada no tema da edição 2016: Por uma vida menos solitária.