Pesquisador da UFMG discute prática da companhia de teatro mineira Sonho & Drama
Em seu mestrado, o dramaturgo Francisco Falabella Rocha analisou a primeira montagem teatral de ‘Grande sertão: veredas’, de Guimarães Rosa
Fundada em 1979, em Belo Horizonte, por Carlos Rocha, Adyr Assumpção, Luis Maia e Hélio Zollini, a Cia. Sonho & Drama construiu uma sólida trajetória no teatro mineiro e nacional. Em 1985, fez a primeira encenação do romance Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, que projetou a companhia nacionalmente. Em sua pesquisa de mestrado, defendida em setembro deste ano, na Escola de Belas Artes da UFMG, o dramaturgo Francisco Falabella Rocha analisou a montagem e os recursos utilizados pelo grupo. A live da defesa de No meio da travessia: Dramaturgia, literatura e Cia. Sonho & Drama, no programa de Pós-graduação em Artes, está disponível no YouTube.
Filho do dramaturgo Carlos Rocha, Francisco Rocha buscou, pautado na fenomenologia de Merleau Ponty, uma poética própria, não apenas elaborando uma teoria, mas também estabelecendo contato real com o objeto de estudo. Ele explorou a interseção das vivências pessoais e da sua trajetória artística – que perpassa campos diversos, como a música, a literatura e o teatro – para propor novas perspectivas para o estudo acadêmico sobre o ensino, a escrita e a prática da dramaturgia.
“Iniciei o mestrado tentando separar os diferentes campos artísticos. Mas, ao estudar a fenomenologia, compreendi que, assim como a vida, a arte é feita da interseção de experiências e convívios. E decidi abandonar o campo da neutralidade”, conta Francisco. Parte importante da construção desse processo, segundo ele, foi o convívio semanal com o grupo de pesquisa Agacho, criado pela professora Marina Marcondes Machado, orientadora da pesquisa.
Como diz o dramaturgo, a investigação das propostas e da prática da Cia. Sonho & Drama o levou a “habitar um espaço na pesquisa em artes que procura vigor, rigor e coletividade de processos”, explorando os diários do grupo e as potências da transcriação, da cartografia e da bricolagem.
Transcriação
O conceito de transcriação, criado pelo poeta Haroldo de Campos, está relacionado à insatisfação de Carlos Rocha, registrada em seus diários de bordo, com o termo adaptação, que, para o fundador da companhia, não definia o exercício do grupo, que se apropriava de modo criativo do texto literário.
Segundo Francisco, a transcriação teatral é o estabelecimento de uma visão crítica e criativa sobre o original, que resulta em novo texto em uma nova língua, e não em mera cópia. “A fidelidade da obra está ligada à liberdade de recriar, criar para um novo lugar, realizar uma transcodificação da linguagem literária para o texto cênico”, explica.
O dramaturgo afirma que as narrativas literárias nascem como um novo impulso para a criação cênica, que proporciona um jogo performativo e oferece ao público espaço e liberdade poética para imaginar. “A apropriação de novos textos traz várias possibilidades para o teatro. A cada nova tentativa surge uma pesquisa diferente. Por isso, os textos literários trazem ‘sangue novo’ para o teatro”, diz Francisco Rocha, autor de peças como O gol não valeu, Carvão e O verme.
Cartografia
Na tentativa de se aprofundar no estudo real dos materiais de pesquisa, como os diários de bordo da companhia teatral, Francisco se inspirou no método cartográfico, capaz, segundo ele, de “propiciar uma descrição densa”. O pesquisador criou mapas dramatúrgicos como forma de “enxergar a realidade e habitar o espaço”.
“O cartógrafo faz justamente isso, habita o espaço, em busca de uma lateralidade. Muito mais que trabalhar com teorias prontas, ele convive naquele lugar, realizando uma escrita coletiva. Ele escreve com a experiência e não sobre a experiência. Esse método me ajudou a abandonar as teorias para mergulhar nos diários usados por Carlos Rocha na montagem de Grande sertão: veredas, que nunca haviam sido estudados”, relata o pesquisador.
O material desenvolvido por Carlos Rocha, segundo o autor da dissertação, demonstra o exercício cartográfico da dramaturgia. O artista mapeou o romance de Guimarães Rosa para elaborar diferentes desdobramentos e rotas para o texto dramático. “No diário de bordo, Carlos Rocha produz um fichamento com uma divisão esquemática em várias partes, identificadas com cores. O tempo todo, ele conversava com os diários.”
Bricolagem
O fundador da Cia. Sonho & Drama desempenhou o papel de um dramaturgo-bricoleur, diz Francisco Rocha. O conceito tem origem nas teorias do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss e é adequado para o universo dos novos textos cênicos, compostos de histórias curtas, fragmentos e trechos criados coletivamente e articulados em cena. “Carlos Rocha tinha um repertório de cenas que eram incluídas ou retiradas do espetáculo, entre uma apresentação e outra. Ele trabalhava com a dramaturgia de recortes, diferente do texto teatral estruturado em atos e desfechos, o que revela certa inquietação”, explica.
Ainda segundo o pesquisador, a escrita conjunta, o caráter provisório do texto e a busca de novas histórias, novas referências e conexões contribuem para a formação de fragmentos que podem ser inseridos, transformando a montagem em uma tarefa processual a cada nova apresentação. “O bricoleur é aquele que trabalha com recortes, com materiais que não necessariamente vão desempenhar uma ordem linear”, afirma Francisco Rocha.
Novos caminhos
A análise da montagem da obra de Guimarães Rosa mostra, como explica Francisco Rocha, que o papel do dramaturgo pode ser constantemente desenvolvido. Como ocorre com o pesquisador cartógrafo, que habita o local existencial, “o espaço de convívio não reivindica hierarquias e poderes, mas procura o que é singular de cada processo na comunhão entre pontos de vista e artistas”, ele diz.
“Todo esse caminho me leva para novas dramaturgias e para a procura de uma escrita autoral, na minha experiência como autor teatral e literário, mas também de uma escrita atoral, centrada na experiência do outro, o ator criador. A poesia de cena parte, então, do acúmulo de vivências em um território comum, sem hierarquias. Uma reescrita do outro-eu-no-mundo, em um ato de poéticas próprias e de poesias compartilhadas”, afirma Francisco.
Segundo o pesquisador, o texto compartilhado é reescrito e está em constante mudança, e tem caráter a um tempo pessoal e coletivo. Dessa forma, a dramaturgia nunca está pronta, o que representa uma alteração na lógica teatral. “O teatro era a dramaturgia e o texto exclusivo do autor, sem contato com os artistas. Hoje, todos colaboram no processo. Trata-se de uma escrita teatral que considera toda a criação e todo o processo cênico.”
Dissertação: No meio da travessia: Dramaturgia, literatura e Cia. Sonho & Drama
Autor: Francisco Falabella Rocha
Orientadora: Marina Marcondes Machado
Programa: Pós-graduação em Artes da UFMG
Defesa: 8 de setembro de 2021