Pesquisadora egressa da UFMG passa temporada em biblioteca de documentos raros em Yale

Joyce de Sá Souza estuda o acervo relacionado à obra de Mustapha Khayati

O tunisiano Mustapha Khayati, historiador da cultura, crítico social e ativista político, integrou, na década de 1960, a Internacional Situacionista (IS), movimento que reuniu nomes de origens diversas engajados em crítica contundente a características da sociedade capitalista como o culto à imagem, que impossibilita, segundo eles, que a vida real seja vivida.

Khayati é o foco da pesquisa que Joyce Karine de Sá Souza, doutora em Direito pela UFMG, iniciou em janeiro na Biblioteca Beinecke de Manuscritos e Livros Raros da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, que tem um dos mais volumosos e relevantes acervos do gênero no mundo. Ela está entre os 60 pesquisadores selecionados para temporadas na biblioteca com bolsa da instituição, no período 2022-2023. Joyce vai ficar em Yale até 31 de maio.

Em 2019, a pesquisadora defendeu a tese Desalienar o poder, viver o jogo: uma crítica situacionista ao Direito, sob orientação do professor Andityas Soares de Moura Costa Matos. Joyce afirma que Beinecke é o “lugar ideal” para dar continuidade a sua pesquisa. Lá, ela tem acesso a cartas que Khayati recebeu, anotações pessoais, correções à mão em textos que mais tarde seriam publicados pela IS, esboços de roteiros de filmes e obras que ele consultava.

“A oportunidade de vir para a Beinecke está diretamente relacionada à tese, porque não há instituição mais adequada para a continuidade dos meus estudos”, diz Joyce Souza, que pesquisa na coleção Modern European Books & Manuscripts. No trabalho de doutorado, ela faz “uma crítica situacionista ao Direito posto como expressão legítima de poder”. Para Joyce, o Direito liberal e capitalista subsidia, no meio político-jurídico, uma dimensão retórica de defesa dos direitos humanos e do direito a ter direitos.

Desvios em situações do capitalismo

Fundada em 1957, na Itália, e encerrada em 1972, a Internacional Situacionista foi um movimento de cunho artístico e político. De inspiração marxista, a IS teve fortes embates também com grupos dessa linha político-ideológica. Nos primeiros cinco anos, o movimento se concentrou na vertente artística e só então estendeu sua atuação ao campo político. O principal pensador associado à IS foi o francês Guy Debord (1931-1994), que tornou notória a expressão “sociedade de espetáculo”, que simboliza a crítica ao império da imagem. As teses situacionistas aparecem hoje com frequência em estudos da comunicação, sobretudo aqueles focados nos fenômenos midiáticos e das redes sociais.

“O grupo era formado por intelectuais brilhantes, de cultura imensa e intensa. Para reforçar suas ideias, eles lançavam mão dos chamados détournements, ou desvios, que consistiam em profanar características do capitalismo com deboche, menosprezo ou radicalidade prática, dando novo destino às situações”, explica Joyce de Sá Souza. Ela acrescenta que o termo situacionista se refere à criação de situações em que “o espetáculo é esvaziado, para tornar possível a vida”. Adepta da ideia de que o Direito age como um dos dispositivos da sociedade-espetáculo, a pesquisadora criou, ela mesma, uma “situação” ao concluir sua tese: abriu mão dos direitos autorais, ou seja, autoriza o uso de seu trabalho por qualquer pessoa sem sequer a exigência de citar a fonte.  

Influência no Maio de 68

Nascido em 1941, em Soliman, na Tunísia, Mustapha Khayati fez parte da Internacional Situacionista de 1965 a 1969, quando se juntou à Frente de Liberação da Palestina. É considerado um dos principais nomes da IS e ficou conhecido pela crítica profunda, nos debates situacionistas, à dominação colonial no Norte da África e no Oriente Médio. O grupo acompanhava com grande interesse o processo que levaria à independência da Argélia, então colônia francesa, e a maioria dos textos sobre o tema era de autoria de Khayati.

O panfleto A miséria no meio estudantil, que tem o tunisiano como principal autor, teve forte influência no movimento Maio de 68, na França, marcado por greves gerais e ocupações estudantis. Outro aspecto que Joyce Souza destaca quando fala de Mustapha Khayati é o projeto não concretizado de um dicionário de palavras, expressões e conceitos vinculados ao pensamento situacionista.

“Ele é muito reservado, consta que vive na cidade do Cairo, no Egito, mas não há certeza”, informa a pesquisadora formada na UFMG, que assumiu com a Universidade de Yale o compromisso – uma das exigências da seleção é que a pesquisa gere um produto – de escrever um livro em que vai unir aspectos teóricos, esboço biográfico e uma entrevista com Khayati. Outros dois volumes estão nos planos de Joyce Souza: um com traduções inéditas para o português e achados da pesquisa com os manuscritos encontrados na Biblioteca Beinecke, outro de entrevistas com Khayati e outros intelectuais sobre o período após a participação na IS e também com pensadores influenciados pelo grupo, como o filósofo italiano Giorgio Agamben.

Dos papiros ao digital

Inaugurada em 1963, a Beinecke Library é o principal repositório de obras das coleções de Yale de volumes impressos em qualquer lugar do mundo antes de 1800, livros publicados na América do Norte até 1821, jornais e cartazes impressos nos Estados Unidos antes de 1851 e manuscritos e livros do Oriente Médio, do Japão, da China e da Coreia. Aos papiros antigos e manuscritos medievais se juntam documentos de escritores modernos, fotografias, material audiovisual e nativo digital. A biblioteca abriga pesquisadores bolsistas das mais diversas áreas do conhecimento.

Texto de Itamar Rigueira Jr.

Fonte

Assessoria de Imprensa UFMG