Pesquisadores da UFMG analisam a legislação que moldou o ensino superior brasileiro
Autoritária e modernizante, reforma universitária completa 50 anos
Há exatos 50 anos, em 28 de novembro de 1968, entrava em vigor a Lei 5.540, encarregada de regular o ensino superior no Brasil. Conhecida como a Lei da Reforma Universitária, propunha investimentos para modernizar e expandir as universidades brasileiras, sobretudo a pós-graduação, com o propósito de impulsionar a economia e o desenvolvimento do país. “Paradoxalmente, também continha cálculo político, para aplacar críticos e opositores do regime ditatorial, representados, em grande maioria, por dirigentes e estudantes universitários”, comenta o professor Rodrigo Patto Sá Motta, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG.
Segundo o historiador, a reforma universitária de 68 foi, sem dúvida, uma medida autoritária, que começou a vigorar poucos dias antes do Ato Institucional 5 (AI-5), principal instrumento da fase mais repressiva da ditadura. Em contrapartida, promoveu a expansão do sistema de pós-graduação, com investimentos em modernização e infraestrutura. Mas deixou como legado problemas que ainda não foram solucionados como a dificuldade de acesso ao ensino superior das camadas menos favorecidas da sociedade.
“Além de seu aspecto repressivo e violento, a ditadura também foi muito elitista do ponto de vista social. As universidades criadas pelo governo militar eram voltadas para grupos da elite, com pouco interesse em resolver os problemas sociais, mas muito preocupadas, por exemplo, em atender às necessidades da economia”, analisa o professor.
De acordo com Sá Motta, havia uma parcela das lideranças universitárias que ansiava por uma universidade reformada. “Digo uma parcela, porque existia outra parte que defendia a manutenção da estrutura vigente. Mas para esse grupo mais jovem e mais dinâmico, considerado de esquerda, a reforma significava uma universidade próxima ao modelo dos países desenvolvidos. Eles queriam ampliar o número de vagas, especialmente para as populações mais pobres, e melhorar as condições de trabalho para os profissionais e as de estudo para os jovens”, afirma o historiador.
No entanto, a reforma levada a cabo pelo regime militar centrou-se na ideia de modernização da produção acadêmica no Brasil. O conflito de interesses se intensificava, segundo o professor, porque, na época, “o modelo que inspirava a reforma universitária era o norte-americano, caracterizado por universidades mais produtivas. Além disso, os Estados Unidos eram o exemplo de país liberal, na vanguarda da luta contra o comunismo no mundo”.
Acordos MEC-Usaid
Rodrigo Patto Sá Motta conta que, enquanto as elites brasileiras se espelhavam nos Estados Unidos, referência de país liberal e antiesquierdista, a esquerda acadêmica brasileira impulsionava o debate com críticas à influência norte-americana, em vários aspectos. “Houve muito protesto contra os acordos MEC-Usaid, firmado entre o Ministério da Educação e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, que emprestou muito dinheiro para as universidades brasileiras”, afirma. Os acordos MEC-Usaid foram implementados no Brasil com base na lei 5.540/68 após negociação secreta. Eles só se tornaram públicos em novembro de 1966 depois de intensa pressão política e popular. A intenção era reformar o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelos EUA.
A influência norte-americana refletiu-se, por exemplo, na criação dos departamentos, na extinção das cátedras e na própria institucionalização da pesquisa. Por outro lado, em razão da resistência das lideranças acadêmicas, as universidades brasileiras se distanciaram do modelo norte-americano na questão do financiamento e autonomia, mantendo-se públicas e sustentadas com recursos do Estado.
“No fim da ditadura, tínhamos universidades públicas de alta qualidade, com ampliação do sistema de pós-graduação, institutos consolidados, campi universitários, melhoria dos salários dos professores e ampliação de vagas, tanto para docentes quanto para alunos. Essas vagas foram ocupadas, em sua maioria, pelos grupos de elite, uma distorção grave, que tentou ser compensada pela expansão do sistema privado, com intuito de absorver os estudantes mais pobres, incentivados pelos financiamentos governamentais. Recentemente é que alguns governos vêm tentado lidar de forma mais positiva com essa situação, com base, por exemplo, na Lei de Cotas”, avalia o professor.
Autonomia
Quanto à autonomia universitária, o emérito da Faculdade de Educação da UFMG e professor da PUC-Minas, Carlos Roberto Jamil Cury, observa que, apenas com a Constituição de 1988, essa autonomia foi, de fato, “conquistada pelos gestores universitários, pelo menos no que diz respeito à organização pedagógica dos colegiados e departamentos”. Cury afirma que, segundo o artigo 3º da Lei 5.540, a autonomia universitária se daria “na forma da lei e estatutos”. Desde então, durante os 20 anos que se seguiram até a Constituição de 1988, houve muitas tensões. “A retirada do termo ‘na forma da lei’, do artigo 207, que trata da questão, representou uma mudança significativa, embora continue na pauta”, observa.
Cury também enfatiza o esforço de entidades ligadas à educação para implementar mudanças no ensino superior ainda no período democrático que antecedeu a ditadura militar. Ele cita o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, o Conselho Federal de Educação, a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Academia Brasileira de Ciências e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), além da própria UFMG.
Especialista em legislação educacional, o professor Cury relembra que, antes da lei da reforma universitária, houve, em 1967, um Congresso Constituinte no Brasil, estabelecido pelo Ato Institucional 4 (AI-4), que promoveu “uma ruptura muito significativa em relação ao financiamento da educação pública no país”. Segundo o professor, até 1967, havia vinculação constitucional de impostos para financiamento da educação superior e para os ensinos de primeiro e segundos graus.
“Com a desvinculação, os recursos foram diminuindo sensivelmente. Ao mesmo tempo, o Brasil vivia o chamado ‘milagre brasileiro’ e havia, por parte do governo ditatorial, uma perspectiva de que o país viesse a se tornar uma grande potência. Para isso, precisava construir uma estrutura de pesquisa considerável e acelerar seu processo de industrialização para substituir as importações. Portanto, ainda que não mais houvesse na Constituição o dispositivo que vinculava recursos para a educação, foram realizados investimentos na expansão e construção dos campi universitários e, sobretudo, na institucionalização da pesquisa e de sua indissociabilidade do ensino”, afirma o professor Carlos Roberto Jamil Cury.
Em entrevista à TV UFMG, concedida durante as comemorações dos 90 anos, o professor Ramayana Gazzinelli falou sobre a reforma de 1968: