Professor da Escola de Belas Artes da UFMG defende tese inédita sobre filosofia da moda
“É possível pensar sobre a moda?” Esse foi o questionamento que motivou o professor Tarcísio D’Almeida, do curso de Design de Moda da Escola de Belas Artes, a empreender sua pesquisa de doutorado, defendida em novembro na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Em As roupas e o tempo: uma filosofia da moda, o professor explora reflexões suscitadas pela moda e traça um histórico do que foi produzido por pensadores acerca do tema, ao longo dos séculos. A tese defendida por Tarcisio D’Almeida é um marco na pós-graduação em Filosofia na USP, pois foi a primeira que tem a moda como tema.
Sob a orientação da filósofa Olgária Matos, do Departamento de Filosofia da Unifesp e também professora aposentada da USP, Tarcísio D’Almeida guiou-se pela ideia que associa moda à produção estética e visitou as obras de filósofos como Montaigne, Montesquieu, Rousseau, Kant e Hegel para perceber como surgiu a relação da moda e da pulsão pelo vestuário às noções de futilidade, efemeridade e frivolidade. O autor se aproximou, também, da produção de intelectuais como Walter Benjamin e Theodor Adorno para abordar a relação simbiótica entre a moda e a modernidade com base nas noções de aparência e de gosto.
“Ao nascer, a moda já preconiza a sua própria morte, por isso o eixo condutor da tese foi a noção do tempo. O objetivo foi perceber como o homem, na evolução dos séculos, comportou-se em relação às roupas e à moda”, explica o professor. Ao alcançar os períodos da modernidade e da contemporaneidade, Tarcisio D’Almeida dedica-se à relação da moda com a cultura e com o consumo, apoiado em nomes como Lipovetsky e Baudrillard.
Leis suntuárias
Na tese, o professor trata a filosofia da moda entre os conceitos de literatura, arte, estética e fetichização de mercadorias sob as perspectivas benjaminiana e frankfurtiana. Tarcísio D’Almeida relembra a criação das leis suntuárias, vigentes na Europa durante a Idade Média e no começo da Idade Moderna, para ilustrar como a pulsão pelo vestuário marca as sociedades há séculos.
“Montaigne e Montesquieu produziram reflexões sobre as leis suntuárias, criadas para impedir a burguesia de copiar a estética indumentária da nobreza. Foi uma reação às primeiras tentativas de pessoas de classes inferiores de se aproximarem esteticamente das classes superiores. A partir daí, as ideias de frivolidade e futilidade passaram a ser comumente associadas à moda”, diz o pesquisador.
Na conclusão do trabalho, o Tarcísio D’Almeida aborda a aculturalidade da moda, que, por vezes, tira partido de apropriações indevidas, esvaziando patrimônios culturais de seu valor original. Como exemplo, ele cita a controvérsia em que a grife francesa Dior se envolveu, em 2017, ao copiar um colete bordado por artesãs romenas no distrito de Bihor, sem dar crédito nem remunerar a comunidade local, e comercializá-lo por 30 mil euros. Em resposta, as artesãs criaram a marca Bihor Couture, que brinca com o nome da grife e dá destaque ao artesanato romeno.
Essa história, segundo Tarcísio, mostra os limites entre o que a moda produz como cultura e a forma como ela se aproxima do acultural ao apropriar-se das raízes de um povo com finalidade comercial. “É possível pensar a moda contemporânea como um acontecimento que, por meio de práticas abusivas do mercado orientado pelo neoliberalismo econômico, ‘obriga’ o criador a oscilar entre a adequação do processo criativo em busca de traços culturais e o alinhamento à demanda exorbitante do mercado.”
Pioneirismo
A tese defendida por Tarcisio D’Almeida é um marco na pós-graduação em Filosofia na USP, pois foi a primeira que tem a moda como tema. O pioneirismo também marcou sua dissertação de mestrado, Das passarelas às páginas: um olhar sobre o jornalismo de moda, defendida em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Foi a primeira desenvolvida na universidade paulista sobre jornalismo de moda.
A tese do professor se relaciona com o livro que publicou em 2012, intitulado Moda em diálogos: entrevistas com pensadores. A obra é resultado de projeto desenvolvido desde a década de 1990 pelo pesquisador, que dialoga com referências contemporâneas sobre a moda como objeto de reflexão. O livro reúne, entre outras, entrevistas com o filósofo Gilles Lipovetsky, com a historiadora Valerie Steele, com a socióloga Diana Crane e com os antropólogos Massimo Canevacci e Ted Polhemus, publicadas originalmente em suplementos culturais.
Com formação multidisciplinar, Tarcisio D’Almeida transitou pela linguística, na graduação, e pela comunicação e filosofia na pós-graduação, sempre tendo a moda como fio condutor. “Eu sou o próprio exemplo do que é a moda, porque ela não é uma ciência, mas um corpus que transita entre os conceitos de inter, trans e multidisciplinaridade. A moda pode ser retratada e pensada em qualquer área do conhecimento humano, como na economia, na fisioterapia, na química, na área têxtil, na filosofia e nas artes", analisa o professor.