Institucional

[Artigo] É preciso enxergar além das paredes…

Doutoranda da Faculdade de Direito escreve em defesa da universidade: "Lugar de pensamento, de expressão, de construção do conhecimento"

Fachada do prédio da Faculdade de Direito, na região central de Belo Horizonte
Fachada do prédio da Faculdade de Direito, na região central de Belo Horizonte Acervo Amanda Bastos

Há poucos dias, a malfadada corrente de ataques à Faculdade de Direito da UFMG chegou até a minha mãe. Aparentemente, alguém pretendia fazer troça daquela instituição, onde sua filha cursou a graduação, o mestrado e, hoje, faz doutorado. As fotos, que circularam entre whatsapps de Belo Horizonte, mostravam as paredes “pichadas” da Faculdade de Direito da UFMG. Nas mensagens, seus detratores referiam-se a ela como uma “cracolândia” e classificavam o ensino público do Brasil como “anarquia total”.

Em resposta a esses ataques, a Faculdade já se manifestou por meio de diversos professores e também pela atual Diretoria, que se comprometeu a revitalizar o espaço conhecido como Território Livre. Ex-alunos se dispuseram a colaborar com a reforma do espaço. Outros alunos empenharam-se nas redes sociais em demonstrar para a sociedade a importância e a excelência da Faculdade de Direito da UFMG, entre os quais a autora deste texto, que surgiu originalmente como um post no facebook.

Implicitamente, talvez aquela corrente de whatsapp representasse algum ataque ao viés "esquerdista", "feminista", quem sabe "defensor de bandido" desta filha – pontos de vista que vêm sendo tratados, hoje em dia, como predicados necessariamente pejorativos.

Explicitamente, representava um ataque ao bem público, ao Estado, à educação gratuita, à sua face inclusiva – cotas para quê? –, à produção do conhecimento, aos professores e aos alunos – não só desta, como de todas as universidades públicas do país. Tudo isso a partir de sentença limitada a um par de fotos de paredes "pichadas".

Necessário recordar que o artigo 65, da Lei 9.60598, preconiza como crime ambiental “pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”. Ocorre, contudo, que há intensa discussão no que tange à configuração de “pixo” (termo preferido entre os adeptos) como meio de desobediência civil e forma legítima de manifestação política e artística. Seria, enfim, uma maneira de intervenção urbana ligada a movimentos de resistência. Dois documentários, Pichar é humano e Pixoação, retratam bem esse universo político-cultural.

O que não se via, porém, em tais ataques, era tudo aquilo que se encontra "além daquelas paredes".

Atividade acadêmica em sala da Faculdade de Direito
Atividade acadêmica em sala da Faculdade de Direito Acervo Amanda Bastos

Felizmente, minha mãe não se acanhou. Levou para o lado pessoal. Disse que quem critica tem ressentimento de o filho não ter, segundo ela, "competência para estar lá". E que ela própria, se pudesse, teria o outro filho estudando na mesma instituição, já que gasta uma nota para mantê-lo em escola particular, sem perceber tamanha qualidade no ensino. Ela ligou indignada. Eu, já sabendo do caso, respondi calmamente: – Mãe, isso é ataque neoliberal. Querem privatizar a Universidade! Para isso precisam difamá-la primeiro.

Não é a primeira vez que isso ocorre no Brasil. Tiraram fotos tendenciosas de muros com "picho", apelando para o moralismo e a indignação seletiva. A já questionável criminalização do "picho" e o repúdio a tudo que representa o Estado, o público, tornam-se mais uma corrente de whatsapp enviesada nesta disputa de discursos.

Minha mãe ficou aliviada. Não é a primeira vez que ela exclama: “Que privilégio ter você, filha!”. Certamente ela se referia à oportunidade de ter por perto alguém que a provoque a "enxergar além". A ver que uma simples corrente de whatsapp pode carregar uma série de questões e interesses ocultos.

Sim, essa mesma mãe que já reviu seu posicionamento sobre política de drogas, criminalização (moralista e simbólica) do aborto, seletividade da mídia, distribuição de renda, meritocracia, sistema tributário. Todas essas reflexões, enfim, como frutos de conversas atentas e abertas, em uma casa onde se valoriza uma formação crítica, que faz enxergar "além das paredes pichadas" – expressão que pode ser deslocada para se referir às primeiras impressões enviesadas por um senso comum acrítico, em diversos temas.

E isso não vem de hoje. A UFMG está em nossas vidas desde 1997. E esse vínculo é recheado de elementos e acontecimentos de difícil enumeração. As aulas de filosofia do Centro Pedagógico, nas quais aprendi a questionar o que é a verdade; as olimpíadas de matemática; a feira de ciência da UFMG Jovem; as aulas de língua a preço popular no Cenex; o curso técnico nos laboratórios de excelência no Coltec; a alegria de ver todos os colegas aprovados com facilidade no vestibular da UFMG; o curso de Direito diversas vezes considerado o melhor do país; a oportunidade de participar de grupos de estudo; o intercâmbio de graduação na Sorbonne (viabilizado pela UFMG, uma das universidades com maior número de convênios deste tipo no Brasil); os colegas aprovados com facilidade na OAB; o departamento de assistência jurídica gratuita para a população; a clínica de direitos humanos; o Polos de Cidadania, programa transdisciplinar destinado à efetivação de direitos humanos; colegas premiados em competições internacionais; colegas aprovados em concursos das carreiras mais difíceis do país; colegas publicando livros e artigos; apresentações em congressos, inclusive internacionais; professores qualificados (aqui e no exterior) com produção acadêmica incomparável com qualquer instituição privada; ex-alunos ocupando cargos de destaque em instituições brasileiras e internacionais.

Evento no principal auditório da Faculdade de Direito
Evento no principal auditório da Faculdade de Direito Acervo Amanda Bastos

É inegável o valor da universidade pública – e eu jamais poderia resumi-lo em um pequeno artigo. Peço desculpas, inclusive, pela omissão de inúmeros projetos importantes. Este texto originou-se de um mero desabafo nas redes sociais, em defesa da universidade pública. Sou apenas um grão de poeira nesse universo chamado UFMG e não me considero porta-voz qualificada da sua grandiosidade

E se há, sim, alguns pontos a debater criticamente – falta de recursos para pesquisa, de materiais nos laboratórios, de investimento para reformas e manutenção –, eles passam longe daquela primeira impressão que uma corrente de whatsapp oportunista e difamatória sugere. Uma corrente limitada a um par de fotos de paredes.

É necessário, afinal, enxergar tudo que vai além das paredes que contêm "picho": os professores qualificados e comprometidos, os alunos, a produção do conhecimento, os rankings de avaliação, a pluralidade de manifestações, o espaço de debates, o lamentável corte de gastos do governo, a pressão do mercado, o anti-intelectualismo, a campanha neoliberal de privatização dos serviços mais importantes do país, a PEC que congela os gastos com educação por 20 anos.

Enfim, é impossível chegar ao fim deste texto sem parar para chorar algumas vezes. A universidade é um espaço democrático, plural. É lugar de liberdade, de pensamento, de expressão, de construção do conhecimento. Definitivamente não se resume a um par de fotos de paredes!

E a Faculdade de Direito? Posso afirmar que ela não é uma fábrica remunerada de diplomas. Nela se compreende que "Direito" não é um mero emaranhado de leis e códigos. Nela se debate que direito tem mais a ver com política do que se imagina, que a lei nem sempre é legítima e que democracia requer construção contínua. Nela são debatidas questões afetas a gênero, a direitos de minorias, à (ir)racionalidade do judiciário, a direitos humanos e à bioética. Muita reflexão crítica, pesquisa e produção diuturna de conhecimento. 

De lá de dentro, sabemos bem que a educação, enfim, transforma vidas. E vidas transformam a sociedade, o mundo. A Paulo Freire atribuiu-se uma frase célebre: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor". Eu tive a sorte de ter uma educação libertadora. Devo isso à UFMG. 

Quanto a vocês que espalharam ou receberam esta campanha difamatória contra a universidade pública, fica meu apelo: é preciso enxergar além das paredes...

Amanda Bastos / Doutoranda em Direito Penal Contemporâneo na Faculdade de Direito da UFMG