[Artigo] Réquiem para o Museu Nacional
Professor Carlos Filgueiras, do Departamento de Química, lembra sua experiência na instituição e ressalta valor do acervo destruído por incêndio
Acho difícil escrever sobre o Museu Nacional neste momento de luto profundo da cultura brasileira. Todavia, acredito que deva fazê-lo. Passei doze anos trabalhando no Instituto de Química da UFRJ e, paralelamente, exerci muitas atividades culturais, graças ao grande número de entidades de primeira linha no campo da cultura sediadas no Rio de Janeiro e à oportunidade de sorver o que aquelas entidades únicas põem à nossa disposição. A convivência com pessoas de destaquel no ambiente cultural também contribuiu decisivamente para isso.
Entre as entidades com as quais trabalhei mais de perto destacam-se pelo menos quatro: o Museu Nacional, o Museu Imperial, a Biblioteca Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vou limitar-me aqui, no entanto, ao Museu Nacional, em virtude do momento que atravessamos. Trata-se de uma instituição que conheci intimamente, em dezenas e dezenas de idas até a Quinta da Boa Vista. Uma das tarefas mais gratificantes foi a elaboração de uma agenda para o Instituto de Química da UFRJ para o ano de 2008, a pedido de sua diretora, professora Cássia Curan Turci. Como seria o ano de comemoração do bicentenário da chegada da família real portuguesa ao Brasil, propus que usássemos objetos de dois museus da UFRJ: o Nacional, fundado por D. João VI, e o D. João VI, assim nomeado em homenagem ao Rei.
A ideia subjacente era mostrar como um museu tem um número incontável de possibilidades culturais e científicas. Meu plano, e assim foi executado, era mostrar a imensa variedade de compostos químicos usados ao longo dos tempos na confecção dos mais variados objetos, utilitários, artísticos ou ornamentais. Tive a ajuda de fotógrafos profissionais e desenvolvi o projeto, ao longo do qual minha admiração e intimidade com o museu, que já eram grandes, aumentaram consideravelmente. A partir daí, todos os anos eu fazia uma visita com os calouros do curso de química ao outro museu, o D. João VI, situado no campus da universidade, para guiar os alunos na fascinante viagem de descobrir a presença constante da química em nossa vida, em todos os seus aspectos.
Voltando ao Museu Nacional, acho conveniente dar uma rápida pincelada sobre aquilo que ele representou e sua importância não só para o Brasil, mas para todo o mundo.
Foram 20 milhões de objetos preciosos destruídos por descaso, displicência, irresponsabilidade, incompetência e ignorância de nossos governantes. O último presidente brasileiro a visitar o Museu Nacional teria sido Juscelino Kubitschek. É uma triste constatação, pois depois dele o país teve 14 presidentes. Quando D. Pedro II visitou Victor Hugo em Paris, este deu-lhe uma foto sua com a dedicatória: “Àquele que tem por ancestral Marco Aurélio”. Esse foi para o Imperador o maior elogio que recebeu na vida. O que dizer de nossos governantes atuais? No dia seguinte à destruição do Museu Nacional, um ministro do atual governo, falando em nome do Palácio do Planalto, disse não suportar as “viúvas” que estavam a se lamuriar pela perda sofrida pelo Brasil. Aliás, quando do bicentenário do museu, em junho passado, nenhum ministro do atual governo quis comparecer à instituição, numa demonstração flagrante do descaso e da ignorância cultural em que chafurdamos na atualidade.
O Ministério da Cultura, ao financiar projetos culturais, deveria dar uma atenção especial às atividades não autossustentáveis, como museus, bibliotecas e concertos de música clássica. Essas instituições e atividades, contudo, não rendem votos, por isso nada valem num país indigente culturalmente. Só um programa que levasse cultura a camadas mais amplas da população poderia mudar o panorama do país. No entanto, o MinC está longe de fazer isso.
Além de trabalhar pessoalmente durante anos com o Museu Nacional, até poucos dias atrás um de meus alunos de doutorado lá esteve para estudar amostras mineralógicas antigas.
Foram-se todas as coleções egípcias adquiridas por D. Pedro I e por seu filho (mais de duas mil peças), as coleções gregas, etruscas e romanas de D. Teresa Cristina, entre as quais mais de duas mil peças de vidro de Pompeia, assim como quatro afrescos pompeianos do primeiro século A.D., a mais antiga Torá do mundo, em pergaminho, o mais antigo fóssil humano do Brasil, assim como incontáveis fósseis animais, de dinossauros a mamíferos de milhares de anos, coleções zoológicas, botânicas e mineralógicas (entre as quais a coleção de José Bonifácio). Também se perderam incontáveis coleções americanas, como múmias andinas, 20 mil peças de tecidos peruanos pré-colombianos, o manto real do rei do Hawaii, presenteado a D. Pedro I e único no mundo, a magnífica taça em prata dourada e coral, dada por D. João VI, além de quadros, móveis e inúmeros objetos preciosos insubstituíveis. Ao contrário do que pensa o ministro do governo atual, quem está viúvo é o Brasil.
Na primeira década deste século, pude presenciar um trabalho notável de aplicação de alta tecnologia à recuperação e conservação das três múmias egípcias do Museu Nacional. A umidade do Rio de Janeiro ameaçava as múmias, atacadas por micro-organismos, sobretudo fungos. Um de meus colegas do Instituto de Química da UFRJ esteve intimamente ligado a este projeto, que foi interessantíssimo: as múmias foram postas num “casulo” de lâminas de sílica, como se fosse um saco de plástico transparente, só que não poroso, uma tecnologia muito sofisticada de origem japonesa. No casulo, o ar foi trocado por nitrogênio seco, o que fez perecerem os micro-organismos aeróbicos que haviam atingido as múmias.
Ilustro este artigo com fotos de alguns dos itens preciosos, sobretudo da seção de arqueologia, que faziam parte do acervo do Museu Nacional e que foram utilizados na confecção da agenda de 2008. Embora se trate de uma amostra ínfima daquele precioso acervo, as peças retratadas são um testemunho do tesouro que se perdeu na trágica noite de 2 de setembro de 2018.