'Biógrafas' descrevem Brasil como personagem complexo e conturbado
Heloisa Starling e Lilia Schwarcz abordaram racismo, corrupção e democracia em conferência no campus Pampulha
A História do Brasil é marcada por permanências como a luta pela construção da cidadania e pelo reconhecimento da igualdade, disse nesta sexta, 15, em conferência no campus Pampulha, a professora da UFMG Heloisa Starling, que enumerou episódios e situações em que, ao longo dos séculos, os brasileiros reivindicaram a liberdade.
Heloisa e a professora da USP Lilia Schwarcz falaram a uma plateia de estudantes em mais um evento da série que comemora os 90 anos da UFMG. As pesquisadoras, autoras do livro Brasil, uma biografia, foram apresentadas pelo reitor em exercício, decano do Conselho Universitário, José Marcos Nogueira.
Heloisa Starling lembrou que, desde o século 17, os brasileiros procuraram a liberdade, a princípio como forma de enfrentar a violência e depois como porta de saída do domínio português. “Aprendemos a lutar por direitos com as Santidades, movimentos dos tupinambás, e com revoltas como a da Cachaça, que uniram os colonos”, disse a historiadora e cientista política.
Ela citou as conjurações Mineira, Baiana e do Rio de Janeiro, no final do século 18, de natureza republicana e apelo igualitário, os movimentos das províncias nordestinas, pela descentralização do poder, e a proclamação da República, que trouxe a ideia de extensão da cidadania, segundo a qual “a liberdade precisa contemplar todos os brasileiros, iguais em direitos, a despeito das diferenças”.
Depois de também mencionar as revoltas do século 20, de militares de baixa patente, operários e camponeses, Heloisa disse que, nas décadas de 1970 e 1980, a liberdade ganhou mais um sentido, articulada à democracia de forma harmônica. “A democracia deixou de ser uma etapa de uma batalha maior e passou a ser objetivo e valor em si mesmos, acima de qualquer regime de governo.”
Sentimento de Brasil
Na abertura da conferência, Lilia Schwarcz refez, em poucos minutos, a trajetória da escravidão no Brasil, ressaltando que aquele “foi mais que um sistema econômico, condicionou a sociedade brasileira pela hierarquia estrita e pelo paternalismo”. Segundo a antropóloga, os escravos se rebelaram por meio dos quilombos, dos cultos e da capoeira, entre outras formas. “Quilombos como o de Palmares, que chegou a ter população maior que a do Rio de Janeiro, mostram que os escravizados não se acomodaram”, disse Lilia, acrescentando que o abolicionismo foi “uma grande causa nacional, suprapartidária, que forjou um sentimento de Brasil”.
Na visão da professora da USP, permanece na sociedade brasileira uma divisão silenciosa, que tem a cor como marcador de diferenças sociais. E, segundo Lília Schwarcz, “não adianta culpar o passado, é preciso pensar nas persistências do presente”.
‘República inconclusa’
Para Heloisa Starling, o Brasil é uma “república inconclusa”, por isso “vulnerável a dois principais inimigos: o patrimonialismo e a corrupção”. Segundo ela, a corrupção se manifestou em diferentes épocas de formas variadas, mas sempre gerada por fatores como poder político e econômico fortemente concentrado, noção precária de interesse público e falta de garantia do exercício de direitos. Para Heloisa, o Brasil é “um personagem complexo e conturbado, no qual convivem o moderno e o antigo, o urbano e o rural, a regra e a exceção”.
Quando abordou a Constituição de 1988 e a inspiração que ela representou para a ideia de solidez das instituições, Heloisa Starling ressalvou que, desde 2015, o Brasil passa por “mudança vertiginosa, que põe em dúvida a qualidade de nossa democracia”. Segundo a coordenadora do Projeto República, da UFMG, uma coalizão manobra para usar ritos e armas da democracia contra a própria democracia, o que dá lugar à intolerância e ao autoritarismo.
“A crise contém em si a chance de olharmos para a História e pensarmos com ela, nas perguntas que precisam ser feitas e na oportunidade de mudança no campo político”, disse Heloisa Starling. “Devemos chamar o passado para nos ajudar, a História pode revelar momentos em que o Brasil procurou a si próprio e foi capaz de se encontrar.”
Heloisa Starling e Lilia Schwarcz também conversaram com a reportagem da TV UFMG. Assista ao vídeo: