Falso apocalipse
Roberto Martins, da Face, publica em livro, depois de quase 40 anos, tese que provocou reviravolta na história da economia escravista mineira
Numa madrugada, quando cursava o doutorado na Vanderbilt University (EUA), em fins da década de 1970, o professor Roberto Borges Martins, aposentado da Faculdade de Ciências Econômicas (Face), recebeu do irmão Amilcar Martins Filho, também professor da UFMG, uma novidade que alteraria o rumo de suas pesquisas: a análise do Recenseamento do Império de 1872 revelava que a grande maioria dos escravos da província não residia nas áreas cafeeiras da Zona da Mata, como rezava a história tradicional.
A descoberta e seus desdobramentos foram transformados na tese que mudou profundamente a interpretação da história econômica de Minas Gerais. Numa época em que, para a historigrafia, era ponto pacífico que o fim do ciclo do ouro provocara forte declínio da economia mineira, a tese, defendida em 1980, contestava a convicção consagrada que remetia a colapso econômico, ruína das cidades e exportação dos escravos para as nascentes regiões cafeeiras do Vale do Paraíba.
“No início do século 19, a economia mineira era muito próspera, e Minas, o maior importador de escravos africanos do Brasil”, afirma Roberto Martins. Ainda neste mês, ele publica o trabalho, pela primeira vez na íntegra, no livro Crescendo em silêncio: a incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX (Icam e ABPHE). O volume contém ainda um post scriptum concluído em 2018, em que o autor acrescenta novas evidências e revisita seu trabalho com olhar crítico.
Segundo Martins, a escravidão da era moderna (que se define como o cativeiro de negros africanos a partir da descoberta da América) sempre foi associada exclusivamente às grandes monoculturas de exportação, como o açúcar no Caribe e no Nordeste brasileiro, o algodão nos Estados Unidos e o café no Sudeste do Brasil. “Minas Gerais foi a única grande economia escravista que não se baseava na exportação. Além do ouro, produzia alimentos, fumo, toucinho, queijos, artefatos de ferro, tecidos e muito mais, visando sobretudo ao mercado interno”, explica o professor, ressaltando que Minas teve mais escravos do que qualquer outra província brasileira, em qualquer época.
‘Exercício de ficção’
“Esse trabalho aprofunda substancialmente nossa compreensão sobre a complexidade da escravidão moderna”, escreveram sobre os achados de Roberto Martins dois dos maiores historiadores da escravidão, Stanley Engerman e Eugene Genovese. Na tese, divulgada por meio de artigos e exposições em seminários, o economista e professor da UFMG ousou contradizer alguns dos intelectuais mais respeitados do século 20, como Roberto Simonsen e Celso Furtado. No post scriptum, ele sustenta que a visão sombria sobre a economia mineira, que chama de “falso apocalipse”, foi inaugurada pelo português Joaquim Pedro de Oliveira Martins, “cuja narrativa histórica [de 1880] era um exercício de ficção”, fruto de “grosseira ignorância sobre fatos básicos da história do Brasil” e de “um rancor atávico contra uma colônia que, tendo sustentado o luxo e a ostentação, de repente passara a negar oxigênio a um Portugal sufocado”.
A segunda parte do livro incorpora dados e pesquisas publicados nas últimas décadas, sobretudo por historiadores mineiros do século 21, que focam aspectos como a diversificação precoce da economia do Estado. Roberto Martins dedica-se a demonstrar, com novos dados, que a expressão “ciclo do ouro” retrata uma noção equivocada, que conduz a distorções sérias de interpretação. “A mineração de ouro era apenas um setor entre vários outros. A propalada decadência de Minas no fim dos anos 1700 não passa de uma lenda; são falsas também histórias como a da alforria em massa e a da transferência dos escravos para o café no declínio da mineração”, afirma Roberto Martins, que foi presidente da Fundação João Pinheiro e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Livro: Crescendo em silêncio – A incrível economia escravista de Minas Gerais no século XIX
Autor: Roberto B. Martins
Edição: Instituto Cultural Amilcar Martins (Icam) e Associação Brasileira de Pesquisa em História Econômica (ABPHE)
629 páginas / R$ 70
Lançamento: 26 de novembro, às 19h30, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466). No evento, os livros serão vendidos por R$ 50.