‘A literatura é uma forma de sobrevivência’, afirma Eneida Maria de Souza
Nesta terça-feira, 26, a professora Eneida Maria de Souza vai ministrar a aula inaugural do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG. A aula ocorrerá no auditório 1007 da Faculdade, às 14h, e é aberta ao público.
Professora emérita da Faculdade de Letras, Eneida conversou com o Portal UFMG sobre sua trajetória acadêmica, sobre a criação dos programas de pós-graduação em literatura no Brasil e sobre o tema de sua aula, Teorizar é metaforizar.
A pesquisadora vê com bons olhos a literatura produzida atualmente no Brasil e, ao mesmo tempo, avalia que é necessário ampliar a autonomia para o pensamento crítico brasileiro em relação aos postulados estrangeiros hegemônicos.
De quebra, Eneida critica os teóricos que insistem em ignorar os autores contemporâneos, restringindo suas análises aos escritores canônicos: “Não podemos viver só de Guimarães Rosas, Gracilianos e Clarices”.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O tema de sua aula é Teorizar é metaforizar. O que isso significa?
Significa que, há vários anos, eu não separo mais o ato de teorizar do ato de ficcionalizar, entendendo-se o ato de metaforizar como algo que está implícito na ideia de ficcionalizar. Antes separávamos crítica literária e literatura. Hoje, não mais. Temos atualmente uma inserção da ficção na teoria, na medida em que teorizar é também pensar, como diz [o filósofo francês] Gilles Deleuze; na medida em que pensar é, em si, teorizar. Digo isso tendo em vista que o pensamento está atravessado por essa relação entre ficção e teoria.
Como se dá, na prática, essa proposta teórica?
A minha proposta é que os conceitos não nascem apenas de outros conceitos, mas também de imagens, de metáforas: a sugestão é a de que o mundo imagético propicia certa entrada na teoria. Lembremos, por exemplo, da obra do [filósofo, sociólogo e crítico literário alemão] Walter Benjamin: em quase todos os seus textos, principalmente nas suas teses sobre a história, ele começa introduzindo uma cena, um quadro, uma imagem, para, a partir desse referencial imagético, desenvolver seus conceitos.
Que subsídios embasam suas reflexões?
Eu utilizo um conceito do [filósofo francês] Jacques Rancière a respeito da ficção. Em vez de reiterar o entendimento comum do conceito de ficção como algo relacionado à mentira, à fantasia, Rancière vai sugerir que um texto passa a ser ficcional na medida em que seu autor se preocupa com a organização de seu texto; em estabelecer para o texto princípio, meio e fim – em resumo, uma ordem particular. No fundo, todo texto precisa de certa teorização, no sentido dessa organização. Essa é a forma de teorizar que beira à ficcionalização.
O arrojo de se delimitar o aspecto ficcional da reflexão teórica implica riscos?
O risco é essa ficcionalização [do processo de produção do texto teórico] cair num vazio. É aquele caso em que o teórico pensa: “vou escrever igual a um escritor”. O risco ocorre quando ele pensa em fazer um texto teórico que seja, também, um texto literário. Isso pode não gerar bons resultados.
Como, na prática, isso se daria?
Pense em Guimarães Rosa, por exemplo, que tem uma linguagem toda própria. Nesse caso, um problema seria você tentar analisar a sua obra escrevendo o texto crítico dentro dos mesmos parâmetros da produção do autor. Isso talvez não seja producente. Então é preciso respeitar certa distância em relação ao objeto; certa distância e, ao mesmo tempo, certa proximidade. As duas propostas caminham juntas. Você se aproxima do objeto e, ao mesmo tempo, se afasta. Nem uma total mimetização, nem um total distanciamento.
Poderia dar um exemplo concreto de como se dá essa nova perspectiva teórica atravessada pela ficcionalização?
Hoje, em um grupo de pesquisa, estávamos lendo A expressão americana, do [escritor e ensaísta cubano] José Lezama Lima. No texto, que é dos anos 1950, ele vai estabelecer uma metodologia muito contemporânea relacionada a esta nossa proposta. Lezama Lima trabalha com associação entre imagens e entre mitos orientais e ocidentais – o Popol Vuh, por exemplo [mito maia que, dentre outras coisas, trata da origem do mundo e da criação do homem]. No texto, a partir dessas reflexões, Lezama constrói um conceito de sujeito metafórico, de sujeito ficcional. Trata-se de uma proposta que se desvincula daquela ideia mais tradicional de sujeito histórico, visto como aquele capaz de se afastar totalmente do objeto que investiga. O sujeito ficcional rompe com essa pretensa objetividade em relação ao objeto. O que quero dizer com isso é que, com esse seu texto, Lezama Lima, como escritor, teoriza nos moldes de uma metáfora. E ele não realiza esta reflexão valendo-se somente de textos teóricos, mas mistura teoria e mito, teoria e literatura. Constrói uma metodologia e uma visão teórica muito particular, uma visão metafórica, um ponto de vista de escritor.
Imagino que essa nova perspectiva implique novos gêneros, novos formatos discursivos para a teoria.
O que vai contribuir para o que nosso texto seja essa escrita atravessada por uma mescla entre teoria e ficção é a opção que temos pelo ensaio. O ensaio vai ser justamente essa proposta de escrita que mescla de uma forma bastante inteligente a teoria e a ficção. Nele, você escapa daquela proposta acadêmica de sentido restrito, que cobrava textos completamente teóricos, voltados para a citação de grandes autores, seja endossando-os ou não. Funciona como meio de fugirmos um pouco, também, de certo lastro “científico” – até porque a noção mesma da crítica literária como ciência já está muito discutida, talvez nem exista mais.
O que é literatura para a senhora?
O que posso dizer é que os significados que tínhamos para o termo literatura – que eram vários – precisam ampliados. Ampliados, por exemplo, para a noção de Poética; ampliados, por exemplo, para a noção de Narrativa. Ampliados para a própria noção de Ficção. Hoje, a literatura sofre a intromissão do cinema, a intromissão das artes plásticas, a intromissão da história; temos o romance histórico, o romance autobiográfico, por exemplo. Tudo isso reflete uma realidade em que a literatura não tem mais autonomia em relação a outras artes e disciplinas. As mudanças quanto ao suporte, as mudanças de meio e de divulgação tornam a literatura algo cada vez mais difícil de definir.
O quanto podemos nos aproximar de uma definição para essa literatura do século 21?
Claro que ainda há defensores de uma literatura tout court, de uma ideia de literatura e de uma ideia de texto literário autônomo. É nesse campo, por exemplo, que se sugere a necessidade de que haja uma reflexão do escritor sobre a própria literatura. Mas tudo isso caminha inevitavelmente para as divergências da nossa época. Pensar em literatura, hoje, implica pensar na transdisciplinaridade, na ausência de uma relação vertical entre as artes e as disciplinas. Cabe falar em uma transdisciplinaridade horizontal, que implica uma ausência de hierarquias. Se no século 19, por exemplo, era a História que comandava todas as discussões – sejam as discussões literárias ou de outra ordem –, no início do século 20 foi a Linguística que passou a dominar todas as outras disciplinas; tudo girava em torno dos modelos linguísticos. Hoje, não há mais isso. Hoje não se tem apenas um modelo – associado com a teoria literária, com a crítica literária – que seja predominante.
Esse lugar não seria hoje ocupado pelo modelo sociológico?
Eu acredito que não. Contamos com vários enfoques disponíveis para analisar a literatura e a arte, em geral: a visão pormenorizada da sociologia, da antropologia, da psicologia. Mas tudo isso faz desse núcleo amplo de intromissões, que se estabelecem horizontalmente. Em minhas pesquisas sobre teoria e crítica, prefiro pensar na questão da contextualização. Para analisar uma obra, é preciso refletir sobre a época em que ela foi escrita, sobre as relações amplas e transdisciplinares que ela pode ter com o presente. Tudo isso é crucial. Não se consegue mais determinar uma obra apenas pelos seus aspectos econômico e sociológico. Todas essas propostas têm de ser bem dosadas.
Qual é a sua opinião sobre a crítica literária brasileira no contexto internacional, considerando que ela é tardia?
Eu acho que a única maneira de a crítica literária brasileira – eu ampliaria aqui a abordagem para a crítica cultural, em geral – manter certa expressão globalizada seria assumindo uma postura de “mostrar a própria cara”. Creio que não é profícuo ficarmos repetindo o que os outros já disseram. Nós, professores de literatura comparada, particularmente, temos de usar as ferramentas que estão à disposição, advindas de teóricos estrangeiros ou brasileiros, mas também precisamos mostrar a inserção do nosso pensamento dentro daquele discurso. O que quero dizer é que essa inserção no discurso diz respeito a certo rompimento com a hegemonia. É preciso ficar atento às modificações e repetições que são muito frequentes nesse tipo de crítica. Nesse sentido, a função primordial da crítica literária comparada é mostrar o seu lugar. Mesmo que seja um lugar ambíguo; mesmo que seja um entre-lugar, como diz o [crítico e escritor brasileiro] Silviano Santiago. Se você não apresentar uma reflexão crítica com relação aos modelos e às ideias estrangeiras, você continua apenas repetindo e mimetizando o que já foi feito.
Quando a crítica brasileira estreia essa postura mais autônoma em relação aos postulados estrangeiros?
Foi com a criação dos cursos de pós-graduação no país. A partir daí, a crítica passou a ser mais sistematizada; os professores começam se preocupar com a criação de um discurso próprio – em cursar doutorado no exterior, também, a partir dos anos 1970. Com isso, houve uma efervescência no ambiente cultural brasileiro. Foi nessa época que o lugar da crítica, que até então era meio nebuloso, começou a ganhar forma. Tudo o que a gente faz hoje é consequência da revolução que houve com a criação dos cursos de pós-graduação no Brasil. É claro que a crítica literária feita anteriormente, a chamada “crítica de rodapé” dos jornais, era também importante. Na verdade, hoje há toda uma retomada da discussão sobre a importância dessa crítica impressionista. Em algum momento, ela foi muito condenada pelos professores das faculdades, mas hoje está sendo revista, na medida em que entra a questão do ensaísmo, de que falei anteriormente. O ensaísmo tem função preponderante para a retomada de uma crítica mais voltada para a relação entre ficção e teoria, preocupação muito frequente na atualidade. Mas é claro que não se trata de uma retomada, simplesmente. O objetivo de se pensar em retomada deve ser obrigatoriamente voltado para a repetição enquanto diferença, nunca de modo a reforçar o culto do mesmo.
Poderia fazer uma breve genealogia do surgimento dos cursos de pós-graduação em letras no Brasil e do Pós-Lit, em específico, programa que ajudou a fundar?
Em 1970, a USP cria o mestrado em teoria da literatura. Já a PUC-Rio e a UFRJ iniciam o curso de pós-graduação em 1971/1972. Na UFMG, começamos o nosso programa no fim de 1973. A criação do Pós-Lit se deve principalmente ao papel desempenhado pela professora [emérita da Faculdade de Letras da UFMG] Maria Luiza Ramos, que faleceu ano passado. A criação foi muito importante para a Faculdade de Letras, que havia sido fundada poucos anos antes, em 1968. Logo depois, quando alguns professores voltaram de cursos de pós-graduação no exterior, eles deram início à implantação do curso de doutorado em literatura comparada. Isso foi muito importante, porque tínhamos poucos doutores naquela época. Reunimos professores dos departamentos da Faculdade de Letras e criamos o doutorado em literatura comparada, privilegiando a relação interdisciplinar e interdepartamental. Passamos a formar nossos próprios doutores, a adquirir certa autonomia teórica e a romper com as fronteiras disciplinares e literárias. É a partir dessa tradição que advém a postura dos cursos da Faculdade de Letras da UFMG de sempre se abrir para outras disciplinas. Ela nunca fechou as portas à interdisciplinaridade, o que realmente ocorre em determinados programas no Brasil. Desde sempre formamos pós-graduados que justificam e consolidam a perspectiva metodológica assumida pela literatura comparada.
Como a senhor vê a literatura brasileira contemporânea?
Eu tenho participado [como jurada] de muitos concursos de literatura, como o Prêmio Sesc de Literatura, o Prêmio Oceanos e o extinto Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Com base nesta experiência e nas atividades relativas à profissão, constato que atualmente há uma produção qualificada de literatura no Brasil. Claro, há os detratores que dizem que essa literatura não vale nada, que não tem mais “aquela qualidade” de tempos atrás. Em minha opinião, isso não procede. Acho que os tempos mudam e que hoje nós temos vários escritores bons, alguns da minha predileção.
Que exemplos pode dar?
Um deles é Silviano Santiago, que, apesar de não ser só dessa geração, ganhou um prêmio ano passado e continua escrevendo dentro de uma perspectiva contemporânea. Há também Bernardo Carvalho, de quem eu gosto muito. Há também Daniel Galera, autor de um livro belíssimo, Barba ensopada de sangue. E vários outros que merecem a nossa apreciação. O próprio Chico Buarque: esse último livro dele, O irmão alemão, revela se tratar de um texto de um bom escritor. Gosto também muito deLeite derramado. Digo isso para afirmar que há certa incongruência, certa implicância em dizer que a literatura acabou, que já não é mais igual àquela de antigamente. Não se pode ficar vivendo só de passado, não podemos ficar vivendo só de Guimarães Rosas, de Gracilianos e de Clarices. Essa postura reflete certo conservadorismo da crítica, o que me irrita um pouco.
Além do volume e da qualidade, a senhora considera essa literatura, que é produzida hoje,contemporânea, no sentido conceitual do termo?
É contemporânea, sim. Em primeiro lugar, levando em consideração essa questão do suporte que mencionei anteriormente. A literatura hoje é múltipla, é multifacetada. Ela tem a influência do teatro, do cinema, da filosofia, da metaliteratura. O suporte dessa literatura praticada hoje é amplo. Há escritores, por exemplo, que escrevem para depois transformar o texto em filme. À vezes, eu posso não concordar muito com isso, mas, mais do que concordar ou não concordar, isso demonstra que na produção dessa literatura há todo um aparato inteligente e um empenho digno de consideração.
Por que a pesquisa em literatura é importante?
Porque a literatura faz pensar; ela nos coloca em uma situação de deslocamento em relação à nossa posição rotineira. Quando você está lendo um livro – de literatura, ou de teoria – você está se deslocando daqueles lugares para os quais, normalmente, estamos voltados; deslocando-se daqueles lugares em que, normalmente, estamos. Ao mesmo tempo, cabe dizer que pesquisar literatura, e a própria literatura, em si, é uma forma de se entregar ao outro. É uma forma de perceber a alteridade, de perceber que esse sujeito que está se entregando à leitura está também convivendo e compartilhando algo com o outro. Isso, para mim, é o mais importante. Em tudo isso está uma forma de felicidade.
Se a literatura faz pensar, e nós pesquisamos a literatura, esse ato de pesquisá-la parece-me, de alguma forma, o ato de pesquisar o nosso pensamento; a nossa forma de concebê-lo...
Sim. E isso diz respeito à ideia de aprendizado contínuo. Quando se lê um livro e ele traz uma novidade, isso representa algo que você nunca pensou; nesse momento você está avançando seu pensamento. A literatura, nesse sentido, é uma forma de sobrevivência; uma forma de sobreviver às intempéries.
Sobrevivência intelectual e subjetiva...
Sim. Isso para mim é o mais importante.