Da desmesura às estratégias de contenção: Nuno Ramos fala sobre o ofício do artista
Multiartista ministrou a penúltima conferência deste Festival; José Miguel Wisnik encerra essa parte da programação hoje à noite
“O mundo da arte. Ai, meu deus do céu.” O humor e a reflexividade desta citação ilustram o tom com que o multiartista Nuno Ramos conduziu a sua conferência no Festival de Inverno, ministrada no Conservatório UFMG na noite de ontem, quinta-feira, 26.
Proposta como uma espécie de celebração de suas parcerias e do convívio com a alteridade, a conferência, de um lado, aludiu à temática do Festival, “coexistência”, e de outro serviu como pretexto para que quatro de seus mais constantes parceiros de trabalho e pesquisas – Allen Roscoe, Eduardo Climachauska, Marília Teixeira e Rômulo Fróes – provocassem o artista com suas particulares “questões”, que, de tão abertas e “poéticas”, mais funcionaram como “armadilhas” para o palestrante.
À parte esse caráter um tanto performático das “perguntas” dos parceiros – que foram coletadas previamente pela produção da conferência e mantidas fora do conhecimento de Nuno até o momento do encontro, por pedido do próprio palestrante –, essas intervenções serviram de mote para que o artista pudesse falar livremente sobre seus trabalhos e sobre o que pensa que seja ou possa ser a arte contemporânea, em seus desafios e potencialidades.
Provocado também pela plateia, Nuno falou sobre a importância de ter ao seu lado pessoas que lhe “ajudam a pensar”. O artista afirmou que, na produção de arte no Brasil, todos são em alguma medida amadores, algo que demarcou como “interessante”, desvinculando a expressão de qualquer sentido pejorativo.
Para a arte dar conta do mundo
A despeito de sua vertente voltada para as exposições e instalações, Nuno Ramos contou que, nos últimos três anos, tem-se dedicado novamente à pintura, área em que começou sua trajetória artística, nos anos 1980. Em contrapartida, também destacou o seu recente e crescente interesse pela performance, o teatro e o “lugar do ator”. De igual modo, o artista abordou as suas investidas textuais, lembrando a composição musical e o ensaio.
Pensando não apenas essa multidisciplinaridade, mas a sua perspectiva criativa mesma, de forma ampla, o artista refletiu sobre certa “desmesura” de sua atuação. “No sentido técnico, no sentido da escala e no sentido do conhecimento que tenho, a minha produção costuma ir para lugares que sempre me parecem maiores do que eu”, disse. “Na verdade, tenho sempre esse sentimento de ter me metido em uma encrenca”, brincou, pensando nos momentos em que se propõe um novo trabalho que demanda competências e conhecimentos que ainda não possui.
“É como se eu sempre me propusesse coisas muito desmesuradas e, em seguida, todos os meus esforços fossem os de tornar aquela desmesura algo mais razoável”, disse Nuno, buscando dimensionar suas pretensões e suas realizações. “Em meu trabalho, estou sempre corrigindo uma aposta meio fora de escala”, demarcou.
Com simplicidade, objetividade e um particular senso de humor, o artista detalhou várias das “desmesuradas” ideias de performances-instalações que ele pensa para o futuro. Seriam desdobramentos possíveis da performance “Cassandra 1”, que recentemente foi encenada por ele, em parceria com Eduardo Climachauska. Nela, vale lembrar, Nuno e Climachauska se propuseram ler, em público, da primeira à última palavra, uma edição do jornal O Globo.
“Quando encontrávamos qualquer palavra que se referisse remotamente à ideia de tempo, como ‘ex’, ‘futuro’, ‘agora’, ‘história’, ‘remota’, ‘dias’ – e em algum momento a gente começou a ficar mais poético, marcando palavras como ‘tumba’ –, a gente acionava um relógio daqueles de campeonatos de xadrez e se levantava para escrever a palavra em um quadro”, disse. Nesses momentos, o outro artista dava seguimento à leitura do ponto em que ela fora interrompida pelo parceiro.
“Depois, fizemos as contas: cada um de nós levantou umas quinhentas vezes, e, mesmo após seis horas e meia de performance, não conseguimos chegar ao final do primeiro caderno”, lembrou o artista, buscando chamar atenção para como a ideia de tempo se faz presente nesse tipo de narrativa jornalística. Nuno contou que, em razão do desgaste físico do trabalho, ele e Climachauska chegaram a adoecer.
Pigmento negro
Provocado quanto às particularidades do mundo da arte face às particularidades do contemporâneo, Nuno buscou relacionar esse mundo a uma das quatro “categorias falsamente antropológicas” – morte (nanquim), luxo (porcelana), arcaico (cerâmica) e dia a dia (cerveja) – que tematizaram uma exposição-e-performance que ele e Climachauska realizaram em 2012, chamada O globo da morte de tudo. Nela, motoqueiros giraram dentro de dois globos da morte – que já estavam dispostos na exposição justamente para isso – de forma a bagunçá-la terrivelmente e transformá-la em uma espécie de “Pollock maluco”, como o próprio Nuno definiu certa vez, lembrando as obras do pintor estadunidense Jackson Pollock (1912-1956).
“Então, o mundo da arte. Ai, meu deus do céu”, começou o artista, ainda pensando sobre o que poderia dizer. “Bem, acho que ele tem um quê de morte, sim. Há uma coisa muito institucionalizada, muito dominada – e dominada há muito tempo –, muito engessada, muito de ‘dizer o próprio nome’”, disse, pensando na ideia de autorreferencialidade. “Então, se eu fosse escolher uma categoria que caracterizasse o mundo da arte contemporânea, acho que eu escolheria a morte. Mais do que ‘luxo’, mais do que ‘arcaico’, mais do que ‘dia a dia’. Acho que a arte está se havendo neste mundo”, afirmou, sem deixar claro quais sentidos do verbo haver estava exatamente evocando.
Ao perceber a possibilidade de um desvio de interpretação, o artista imediatamente tratou de ponderar que, quando falava em morte, não estava falando da ideia de “morte da arte”, mas da morte em um sentido amplo e não aplicado. “Esse [a ‘morte da arte’] é um [outro] tema. Até porque a arte, como a gente a entende, praticamente não existiria sem [essa ideia de] ‘a morte da arte’”, disse.
“Pressões, curadores, autonomia da arte, o mercado, sua ausência, o desespero por sua ausência”, listou o artista, tentando encontrar uma linha de pensamento: “Hoje parece que o fluxo da arte se dá já no mundo público; é como se já não desse mais para respirar, nem mandá-la (a arte) para outro lugar”, cogitou. “A arte está precisando se livrar de coisas que, externas a ela, estão muito fortemente ligadas a ela, o tempo todo”, arriscou.
“O jogo como eu entenderia a arte... um imaginário que cava um buraco no mundo. Mas esse buraco está difícil de cavar, porque esse buraco está sendo cavado pelo mundo, e não para fora dele. Então, sim: nanquim”, arrematou.
Na noite desta sexta-feira, 27, um encontro com o músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik desfecha o ciclo de conferências do Festival, que já contou com comunicações da atriz, diretora e dramaturga Grace Passô, e da diretora do grupo Oficcina Multimédia, Ione de Medeiros. A conferência ocorre às 19h no Conservatório, que fica na Avenida Afonso Pena, 1.534, Centro. O evento é aberto ao público.