Livro aborda a influência da canção sertaneja no debate sobre a política agrária na ditadura
Lançamento da Editora UFMG insere-se em tradição de obras que investigam as representações, na música brasileira, da modernização política, econômica e social almejada para o país
O campo brasileiro é, pelo menos desde a Era Vargas, um território em disputa, mas, entre 1964 e 1985, período da ditadura civil-militar brasileira, dois projetos agrícolas radicalizaram esse combate. De um lado, o projeto do poder militar, que, a despeito dos prejuízos causados à vida do homem do campo, visava ampliar e despersonalizar as áreas de cultivo, modernizar e profissionalizar a produção agropecuária e avançar na perspectiva da monocultura, com vistas a uma melhor inserção do Brasil no mercado internacional. De outro, estavam os ideais dos lavradores de fato, uma gente que sonhava com uma reforma agrária que lhe possibilitasse a experiência orgânica, delimitada, proprietária e subjetiva junto à terra, fora da crescente subjugação daqueles tempos.
O primeiro projeto venceu, com a concessão de grandes áreas de terra do Norte do país à produção monocultora de larga escala, em fazendas de extensão monumental, afeitas à produção de monopólios e ao desmatamento indiscriminado. Nesse contexto, os pequenos sítios de cultivos e criações variadas foram sumindo – o que não quer dizer que o sonho da reforma agrária não tenha se mantido vivo ao longo de todos esses anos, mesmo diante do medo causado pela coerção das organizações de trabalhadores, das prisões, das torturas e matanças de suas principais lideranças. Esse sonho seguiu embalando o sono daqueles que defendiam a construção de um país comprometido com o sacrifício de poucos para o bem-estar de muitos.
Lançado no início deste ano pela Editora UFMG, o livro Canção sertaneja e política agrária durante a ditadura militar, da pesquisadora Marcela Telles Elian de Lima, analisa como esse estilo brasileiro, a música sertaneja, cantou, naquele período, esse embate de projetos. Segundo a pesquisadora, os artistas sertanejos daquele tempo, compondo um conjunto heterogêneo, “ora se colocaram em defesa de uma efetiva redistribuição fundiária, ora a negaram em favor da crença na técnica e na cooperação entre as classes, sob a tutela das elites, como saídas para o desenvolvimento do país”. Esse é um contexto que, por sua singularidade, possibilita falar de uma “posição híbrida” desses artistas, na avaliação da pesquisadora; uma posição que alternava entre o conservadorismo e a revolta. A rigor, explica Marcela, essa diversidade de abordagens pode ser identificada não apenas entre cantores, mas na discografia de um mesmo cantor, ao longo dos anos.
Do 'ranchinho amarradinho' ao 'diamante da nação'
Marcela Telles aborda uma vasta discografia em sua obra, que alcança nomes como Tonico e Tinoco, Vieira e Vieirinha, Milionário e José Rico, Leo Canhoto e Robertinho, Zilo e Zalo, Liu e Léu, Davi e Durval, Pedro Bento e Zé da Estrada, Chitãozinho e Xororó, Trio Parada Dura, Tião Carreiro, Almir Sater, Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Sérgio Reis, Dino Franco e Mouraí, Biá e Dino Franco, Cacique e Pajé, Jacó e Jacozinho, entre outros.
De um lado, encontram-se versos que, como anota a pesquisadora, captam a frustração e o desencanto “de uma gente condenada à errância e sua resistência em passar ao modo de vida urbano”. Por exemplo: “Eu não troco meu ranchinho amarradinho de cipó por uma casa na cidade nem que seja bangalô” (canção Chitãozinho e Chororó, nas vozes de Serrinha e Caboclinho); “De que me adianta viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar” (Saudade de minha terra, nas vozes de Belmonte e Amaraí); “Espere minha mãe estou voltando” (Fogão de lenha, nas vozes de Chitãozinho e Xororó); “Voltar pra Minas Gerais, sei que agora não dá mais, acabou o meu dinheiro. Que saudade da palhoça, eu sonho com a minha roça no Triângulo Mineiro” (Caboclo na cidade, nas vozes de Dino Franco e Mouraí).
Em contrapartida, essa mesma discografia traz composições que tomam a cultura urbana como referencial temático e narrativo não necessariamente negativo. Em 1970, Leo Canhoto e Robertinho lançam, por exemplo, uma piscadela para a cultura jovem urbana (e, por conseguinte, para a Jovem Guarda) em Meu carango: “Todos me chamam de maluco só porque vivo correndo, quase sempre apavorado, no meu carango corro a duzentos por hora, para esquecer que amo alguém sem ser amado.” Outro exemplo de visão positiva do contexto urbano – e da própria conjuntura história que o fomentou – pode ser encontrada em Bandeirante Fernão, nas vozes de Tião Carreiro e Pardinho: “Morreu na selva em delírio o bandeirante Fernão, sete anos de martírio em conquista do sertão, no lugar das esmeraldas, que só foi uma ilusão, surgiu São Paulo grandioso, o diamante da nação.”
Chama a atenção, ainda, o modo como o cair da noite nos becos, boates e bordéis da cidade grande é tema recorrente em canções como Mariposa do amor, Mulher da noite, Borboleta do asfalto – e na célebre Boate azul. Por todas essas articulações, Marcela Telles diz que as canções dessa época e desse estilo são “fonte privilegiada para compreender como boa parte dos brasileiros estava certa de que o país ia melhorando, enquanto a outra havia perdido totalmente a esperança; alguns celebravam a tecnologia como fator evolutivo da sociedade, outros lamentavam que as relações humanas estivessem tão frias. Onde uns enxergavam uma cultura estagnada, outros aplaudiam a crescente diversidade. Escutar essas canções e observar suas paisagens é espiar o ângulo de visão do outro.”
As reflexões reunidas no livro foram originalmente defendidas como tese de doutorado em dezembro de 2014 no Programa de Pós-graduação em História da UFMG, sob a orientação da professora de História Heloisa Starling, na linha de pesquisa Culturas políticas.
Parte lembrança, parte esperança
O livro está dividido em quatro capítulos. O primeiro, Tudo é sertão se o violeiro toca, situa a especificidade da tradição dos artistas sertanejos no conjunto da moderna canção popular brasileira. Nesse capítulo, a autora introduz a particular colaboração oferecida por esse cancioneiro para o debate das políticas agrárias executadas ao longo da ditadura militar. Os dois capítulos seguintes, denominados Mecanização e cidadania disciplinada e Terras, homens e estradas, debruçam-se sobre o desejo das populações rurais pela democratização do acesso à terra e pelo reconhecimento de seus direitos políticos. Tratam, portanto, da resistência da esperança, naqueles períodos sombrios, de um futuro melhor. Denominado A canção sertaneja na contramão do futuro, o quarto capítulo se apresenta como contraponto aos capítulos anteriores. Ele trata do olhar que a canção sertaneja do período lançou para o passado, em uma espécie de saudosismo idealizador.
Marcela Telles explica que, nos anos de chumbo, esses compositores trataram, “por meio de um recurso narrativo próprio”, da reforma agrária, da extensão dos direitos sociais ao trabalhador rural e de planos e programas governamentais lançados no período, tais como o Proálcool (Programa Nacional do Álcool), o ProRural (Programa de Assistência ao Trabalhador Rural), o Proterra (Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste) e os planos nacionais de desenvolvimento.
“Os compositores e intérpretes das canções sertanejas organizaram suas narrativas sobre as aspirações e os projetos de Brasil rural nesse período em torno de dois verbos: esperar e lembrar”, ela anota. “Eles souberam construir uma paisagem capaz de abrigar as diferentes imagens, assumidas pela esperança e pela lembrança, que nesse período orientaram a procura de inúmeros trabalhadores rurais por uma vida melhor", complementa.
Longa linhagem
Desde 2003, Marcela Telles – que cursou toda a sua formação em história (graduação, mestrado e doutorado) na UFMG – integra, como pesquisadora, o Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória, que é coordenado pela professora Heloisa Starling.
Em 2012, no âmbito desse projeto, Heloisa já havia lançado, junto com o historiador Bruno Viveiros, o livro Imaginação da terra: Memória e utopia na moderna canção popular brasileira, que também trata das lutas pela terra no país tal como elas foram cantadas pela imaginação cultural brasileira – ainda que, nesse caso, a abordagem seja generalista, sem o recorte específico de gênero musical. Ambos os livros podem ser adquiridos pelo site da Editora UFMG.
Outro livro – ou melhor, coleção de livros – que trata do tema é a série Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira, lançada em 2004. Distribuídos em três volumes, seus 26 ensaios detalham o modo como os valores e temas republicanos têm sido expressos pela canção popular moderna brasileira desde a fundação da república. Também organizada por Heloisa Starling (em companhia de Berenice Cavalcante e José Eisenberg), a coleção reitera a percepção de que a produção musical brasileira está diretamente ligada à conjuntura social do país e à construção dos nossos sentidos de nação.
A linha de pesquisa homônima do Projeto República que deu origem aos livros também resultou no programa Decantando a República: diálogos em prosa, verso e melodia, da Rádio UFMG Educativa, lançado em 2005 com o objetivo de promover desdobramentos desse diálogo entre a canção popular, o pensamento político e a história do Brasil recente. Ao longo de sua história, o programa abordou temas como o cotidiano urbano das grandes cidades, o modo de vida das pessoas comuns, os espaços simbólicos pertencentes ao universo cultural das sociedades e a imaginação coletiva em torno de conflitos e tensões sociais. Os principais episódios do Decantando a República podem ser ouvidos no Apple Podcasts e no Soundcloud.
Livro: Canção sertaneja e política agrária durante a ditadura militar
Autora: Marcela Telles Elian de Lima
Editora UFMG
224 páginas | R$ 54
Livro: Imaginação da terra: Memória e utopia na moderna canção popular brasileira
Autores: Heloisa Starling e Bruno Viveiros
Editora UFMG
242 páginas | R$ 37
Livros: Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira (três volumes)
Organizadores: Berenice Cavalcante, Heloisa Starling e José Eisenberg
Editoras Nova Fronteira e Fundação Perseu Abramo
662 páginas (ao todo) | Preços variados (usado)