Maria Lúcia Burke: 'Gilberto Freyre ilumina a história do Brasil'
Em conferência, historiadora brasileira da Universidade de Cambridge falou sobre a influência da obra do escritor pernambucano
Os movimentos de emancipação dos negros que, nos dias atuais, ainda eclodem pelo país são, para a historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, evidências de que “Gilberto Freyre ainda está vivo por aí, ainda que não mencionado, ou mesmo desconhecido". “Sua biografia ilumina a história do Brasil”, afirmou a professora, em conferência realizada na manhã de hoje, no Centro de Atividades Didáticas em Ciências Humanas (CAD 2).
Segundo Maria Lúcia, o escritor pernambucano inaugurou, na década de 1930, uma trajetória de “redescoberta do país”. Com o tema Gilberto Freyre: nosso contemporâneo?, sua palestra marcou o encerramento do ciclo UFMG 90: desafios contemporâneos, que celebra as nove décadas de fundação da Universidade.
Influência
Considerado a mais emblemática obra de Freyre, o livro Casa grande & senzala, publicado em 1933, “redefiniu a identidade do brasileiro”, na avaliação de Maria Lúcia, em uma época em que o branqueamento da população era tido como condição para o progresso. “O autor encorajou mudanças drásticas na autoestima do brasileiro, reforçando o viés positivo da miscigenação e da hibridização cultural”, refletiu.
Ao longo dos anos, o legado de Gilberto Freyre ficou cada vez mais reconhecido como inspiração importante para a transformação global da atitude sobre a questão racial. Durante sua palestra, Maria Lúcia Burke trouxe à tona alguns exemplos dessa influência.
Em carta escrita no ano de 1966, resgatada pela palestrante, o sociólogo austro-americano Frank Tannenbaum afirmou que as reflexões contidas em Casa grande & senzala tiveram grande peso na mudança de postura dos jovens americanos em relação ao racismo. Tannenbaum projetou ainda que o escritor brasileiro seria, futuramente, pesquisado como influenciador de toda uma geração, tendo colaborado na consolidação dos direitos civis nos Estados Unidos.
Como destacado por Maria Lúcia, é possível inferir, por meio da leitura da obra de Gilberto Freyre, sua predileção por “forças opostas”. “O Brasil retratado pelo escritor é uma mistura de elementos positivos, como a alegria do povo, e negativos, como o sadismo dos senhores de escravos, em que, no entanto, os choques coexistem em confraternização”, dissertou. “Sempre que possível, o autor demonstra que a impureza é inerente a tudo o que é humano. Ele é, de fato, fascinado pelos antagonismos”, completou.
Mentiras patrióticas
O autor, segundo a conferencista, apostou no uso de bibliografia científica para fundamentar seus postulados sobre as vantagens da miscigenação, tratando do tema com “seriedade, clareza e objetividade”.
Maria Lúcia sublinhou, no entanto, o modo peculiar pelo qual o autor enaltecia as qualidades do Brasil, fenômeno que chamou de “mentiras patrióticas”. Segundo ela, Freyre comumente sugeria, com certo exagero, que os problemas raciais da sociedade brasileira eram sempre resolvidos democraticamente. “Assim, ele vendia a imagem positiva do país para a plateia estrangeira”, afirmou.
Para a historiadora, Giberto Freyre, como intérprete do Brasil, é um pensador “atemporal” e de “marca existencial rara”. “Por sua capacidade e qualidade em dialogar com o presente, o escritor e sua obra sempre serão contemporâneos, de todas as épocas.”
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é historiadora, com pós-doutorado pela Universidade de Cambridge (Inglaterra). Foi professora da Faculdade de Educação da USP, onde obteve os graus de mestre, doutor e livre docente. Pesquisadora associada do Centre of Latin American Studies da Universidade de Cambridge, tem-se dedicado ao estudo da circulação e recepção de ideias nos contextos europeu e latino-americano e à trajetória intelectual de pensadores como o próprio Gilberto Freyre, Rüdiger Bilden e Anísio Teixeira.
Antes da conferência, Maria Lúcia Pallares-Burke conversou com a TV UFMG. Assista ao vídeo: