Pesquisa estima pelo menos 18% de subnotificação de mortes por covid-19 no país
Análise de declarações de óbito por causas relacionadas à doença no início da pandemia mostrou diferença importante causada pela imprecisão dos registros
Pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFMG analisaram atestados de óbito de causas relacionadas à covid-19 no início da pandemia e estimaram subnotificação de 18% no número de mortes no país. Os resultados foram publicados na revista PLOS Global Public Health, no dia 5 de maio.
Foram analisados 1.365 casos de óbitos ocorridos entre fevereiro e junho de 2020, nas cidades de Belo Horizonte (MG), Salvador (BA) e Natal (RN). Os registros oficiais indicaram como causas síndrome respiratória aguda grave (SRAG), pneumonia não especificada, sepse, insuficiência respiratória e causas mal definidas. A investigação foi coordenada pelo Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde (GPEAS), ligado ao Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina.
Após cruzamento das bases de dados sobre mortalidade, a equipe de pesquisa coletou dados de prontuários médicos, exames e outras informações sobre cada caso e analisou se o registro deveria citar como causa básica a covid-19. “Muitas vezes o óbito ocorreu antes dos exames ficarem prontos, de forma que o médico assistente declarou como causa básica um fator mal definido ou uma doença que, na verdade, foi uma intermediária no processo mórbido. Em outros casos, a demanda de trabalho para as equipes de saúde era tão grande que ocorreram erros no registro das causas de morte, como a inversão de causas intermediárias com a causa básica”, explica a professora aposentada da Faculdade de Medicina Elisabeth França, que atua na pós-graduação em Saúde Pública e coordenou o estudo.
Causas ‘garbage’
A identificação da covid-19 como provável causa básica de morte nas três capitais analisadas foi relevante. Quase um quarto das mortes investigadas foi, de fato, em decorrência da doença. “Esse cenário tem implicações para as estatísticas vitais do país, pois temos um número importante de óbitos por causas garbage em cada estado que pode ocultar essa doença. Com base nos resultados da pesquisa, estimamos que o número de óbitos pela doença no Brasil em 2020 está subestimado em pelo menos 18%”, afirma a pesquisadora. Causa garbage é aquela considerada como a causa do óbito nas estatísticas de mortalidade, mas que não foi a causa básica, ou seja, a doença ou acidente/violência que iniciou a cadeia de eventos que levou ao óbito. É uma causa intermediária ou pouco específica, portanto pouco útil para a formulação de políticas de prevenção. (A Revista Brasileira de Epidemiologia tem uma publicação sobre o tema.)
Os pesquisadores observaram maior subnotificação entre idosos (25,5%) do que em pessoas com menos de 60 anos (17,3%). Com a referência em mãos, foi estimada a subnotificação para o perfil epidemiológico do país, considerando idade, estado de residência e causa garbage específica registrada nos sistemas oficiais de mortalidade. Após essa análise, os pesquisadores chegaram à estimativa de subnotificação de 18% das mortes por covid-19 no ano de 2020.
Essa estimativa é considerada conservadora pelos autores do estudo, uma vez que o número de doenças associadas à covid-19 que passaram pela análise foi limitado. Outras causas não garbage, como a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), não entraram no estudo, mas poderiam aumentar a porcentagem da subnotificação. Outro fator responsável pelo caráter conservador da análise estatística foi a utilização de dados globais de fevereiro a junho para cálculo da estimativa, que poderia ser maior se os números fossem projetados com base nos resultados encontrados em maio e junho somente, período coincidente com o início da fase mais crítica da epidemia.
Dessa forma, somente no ano de 2020 a subnotificação de óbitos por covid foi de 37.163 casos, segundo a estimativa. A equipe de pesquisadores entende que os dados chamam a atenção para o fato de a pandemia ter sido ainda mais grave no país e evidenciam a importância dos registros adequados para a formulação de políticas de saúde pública.
“Depende do médico a definição da causa que será declarada como básica para o óbito. Precisamos investir na infraestrutura dos serviços de saúde, pois a indisponibilidade de resultados de exames no momento do óbito pode ter sido um dos principais fatores para a subnotificação. Também devemos capacitar melhor os profissionais para o preenchimento adequado das declarações de óbito e melhor compreensão de sua importância em saúde pública”, afirma Elisabeth França. Segundo ela, as escolas médicas têm falhado nesse quesito, uma vez que não incluem como prioritário no currículo o enfoque na análise epidemiológica da situação de saúde com uso das informações estatísticas sobre causas de mortalidade.
Modelo recomendado
Os autores do estudo destacam que a declaração das causas segue o modelo padronizado de declaração de óbito recomendado pela Assembleia Mundial de Saúde desde 1948 e utilizado internacionalmente. O modelo tem duas partes: a causa básica deve ser declarada na última linha da parte 1, e uma sequência deve ser estabalecida de baixo para cima, até a causa terminal. As condições mórbidas sem relação direta com a morte devem ser declaradas na parte 2.
Outra autora do estudo e integrante do GPEAS, Daisy de Abreu avalia as declarações de óbito como fundamentais para as informações que norteiam a saúde pública. “É claro que, num quadro de epidemia, as coisas são mais complexas, mas a qualidade da informação pode ser melhorada com investimento na capacitação dos profissionais de saúde em relação às estatísticas de saúde, desde sua formação.”
O estudo contou com a colaboração da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Norte e das secretarias municipais de Saúde de Belo Horizonte e de Salvador. O financiamento foi da Vital Strategies.
Multidisciplinar e internacional
O Grupo de Pesquisas em Epidemiologia e Avaliação em Saúde congrega profissionais com perfil multidisciplinar que atuam em diferentes departamentos e unidades da UFMG (Medicina, Farmácia, Enfermagem e Estatística), bem como de instituições externas, como o Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME), da Washington University (EUA), e a Melbourne University (Austrália).
O GPEAS produz, principalmente, análises de situação de saúde e avaliações de serviços de saúde. Desde 2016, também conduz projetos de pesquisa que visam à avaliação de iniciativas para melhoria da informação sobre mortalidade no Brasil, em parceria com o Ministério da Saúde.