Estudo etnográfico relaciona cidadania e construção do espaço público em BH
Pesquisa sobre educação urbana desenvolvida na Escola de Arquitetura analisou experiências de um bloco de carnaval na favela e a fruição de um parque por grupos do asfalto e do morro
Há quase dez anos, um grupo de moradores do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, passou a questionar por que não havia um bloco de carnaval na favela. Vários deles participavam de blocos que saíam no “asfalto”, desde a explosão dessa prática na cidade, por volta de 2010, mas o movimento não chegou à comunidade. Daí surgiu, em 2014, o Bloco de Carnaval de Rua e de Favela Seu Vizinho, que reúne pessoas de dentro e de fora da comunidade. O desfile do bloco cresceu e já não cabe nas ruas estreitas do Aglomerado – é realizado nas cercanias, no bairro Santa Efigênia –, mas lá são promovidos pequenos cortejos que envolvem mais moradores e movimentam a economia local. As atividades do bloco extrapolam os desfiles e os cortejos: há oficinas de música e dança, biblioteca comunitária, projetos culturais e outras atividades para pessoas de todas as idades.
O Seu Vizinho chamou a atenção da arquiteta e filósofa Ana Paola Silva Alves, que sempre se incomodou com a conformação excludente da cidade e com o que ela considera uma certa apatia das pessoas com relação às questões urbanas. Em sua pesquisa de doutorado no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG, defendida no fim de 2021, Ana Paola analisa a relação entre experiência espacial e prática educadora em espaços públicos de Belo Horizonte, com foco na possibilidade de gerar transformações subjetivas e nos próprios espaços, com base no questionamento da concepção tecnocrática de cidade.
“Aprendemos com o [filósofo e sociólogo francês] Henri Lefèbvre e o [geógrafo britânico] David Harvey o conceito de direito à cidade, que deve ser construída coletivamente, não apenas por especialistas”, afirma Ana Paola. “A concepção urbana moderna, exacerbada pelo neoliberalismo, é baseada no cerceamento no uso da cidade. A aporofobia [aversão aos pobres] está materializada nos espaços públicos, na forma de obstáculos, por exemplo, para ocupação de bancos e calçadas sob marquises, entre outras barreiras, legais e simbólicas.”
Com base em sua vivência no bloco Seu Vizinho – fruto de “proposta coletiva e democrática, que valoriza as singularidades e saberes da comunidade da favela” –, a pesquisadora ressalta que a experiência do Aglomerado da Serra é mais um capítulo do movimento espontâneo de apropriação inédita do espaço público desencadeado pela proibição, em 2009, durante a gestão de Marcio Lacerda na Prefeitura (2009-2016), de se utilizar a Praça da Estação para eventos de qualquer natureza. “O ‘resgate’ do carnaval dos blocos, que promovem a junção de festa e política, também é parte desse movimento”, afirma.
“As manifestações de ocupação e de reivindicação devem ser lidas pela administração municipal como subsídios para políticas públicas”, diz Ana Paola, que cita outros modos de apropriação coletiva dos espaços públicos, que recriam a cidade de maneiras não planejadas, como o Duelo de MCs, sob o viaduto de Santa Tereza, e os Hortelões (hortas comunitárias) da Lagoinha. Ela acrescenta que há medidas positivas da Prefeitura, como o fechamento de vias ou a redução da velocidade dos carros para abrir espaço para a população.
Parque reproduz segregações espaciais
O outro objeto da pesquisa que resultou na tese de Ana Paola Alves é o Parque da Barragem de Santa Lúcia, localizado na região centro-sul de Belo Horizonte. Concebido para funcionar como espaço inclusivo e democrático, de convivência dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia e dos bairros próximos, o parque foi construído com pouca participação direta dessas pessoas e, como escreve Ana Paola Alves em sua tese, “materializou uma setorização de equipamentos e usos que acabou reproduzindo as segregações espaciais que caracterizam a cidade”.
Sua investigação demonstrou que há, no parque, tentativas constantes de criação de novas formas de segregação, por parte dos usuários de classe média, que tiram partido da facilidade de acesso a políticos e órgãos públicos. “Os frequentadores mencionaram também que há ‘acordos’ informais que estipulam horários e locais diferenciados para a frequência dos dois públicos, e os serviços de manutenção prestados pela Prefeitura privilegiam os espaços ocupados pela população branca, de classe média”, afirma a pesquisadora, enfatizando que colheu depoimentos que davam conta de episódios de preconceito racial.
A defesa que Ana Paola Alves faz da possibilidade de dissenso na construção do espaço urbano está sintonizada com as ideias do sociólogo Chico Oliveira (1933-2019), que foi professor da USP e cujos textos são muito debatidos no Observatório de Conflitos Urbanos de Belo Horizonte, vinculado à Escola de Arquitetura. “Ele dizia que o indivíduo se faz cidadão em relação ao outro, o exercício da cidadania implica o reconhecimento do outro, o que torna inevitável o conflito. O conflito é importante para que se estabeleçam outras cidades possíveis”, diz a pesquisadora.
Conceitos muito presentes na tese são os de educar e deseducar a cidade. “A conformação urbana, assim como as práticas socioespaciais que reproduzem o status quo, naturalizando as condições pouco democráticas vigentes, deseducam a cidade. Por sua vez, as experiências urbanas que reivindicam o direito à diversidade e possibilitam a percepção de que o urbano está em constante transformação educam a cidade”, diz Ana Paola, que é graduada em Arquitetura e Filosofia e fez o mestrado em Filosofia. Ela é arquiteta da Prefeitura de BH.
Uma referência fundamental da pesquisa são as ideias e teorias de Paulo Freire, que condenou a hegemonia dos especialistas que “depositam” o conhecimento, de modo vertical e hierárquico, para que seja absorvido passivamente – é o que educador denominou de educação bancária. “Assim como Freire pregou uma educação emancipatória para as pessoas, precisamos defender também para as cidades uma educação emancipatória. Meu encontro com a pedagogia freiriana foi forte inspiração para pensar uma educação crítica, prática e transformadora, que parta das experiências nos espaços da cidade. O trabalho mostra que práticas espaciais, que são ações políticas no ambiente urbano, ampliam a cidadania e as possibilidades de recriação conjunta da cidade”.
Tese: Paradoxos em torno da educação urbana: relações entre cidadania e construção do espaço público na cidade de Belo Horizonte
Autora: Ana Paola Silva Alves
Orientadora: Raquel Garcia Gonçalves (Escola de Arquitetura)
Coorientador: Tiago Castela (Universidade de Coimbra, em Portugal)
Defesa: 24 de novembro de 2021, no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG