'As vozes dos brasis são muitas, e temos que escutá-las', afirma Sandra Goulart
Na abertura do 53º Festival de Inverno UFMG, reitora destacou o paradoxo de um país que mudou, mas continua ‘tramando para permanecer como sempre foi’
Abrir espaço para garantir que as vozes subalternas sejam devidamente escutadas é um “compromisso ético” da UFMG, afirmou a reitora Sandra Regina Goulart Almeida na cerimônia inaugural do 53º Festival de Inverno UFMG. Sua fala remete a Escutas e vozes dos brasis, tema do evento que, à luz do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, promoverá reflexões sobre os impasses do Brasil contemporâneo, que ainda guarda traços de um país arcaico e desigual.
“O Brasil mudou profundamente em alguns aspectos, mas permaneceu imutável em outros. Aqui, muito se tramou para permanecer como sempre foi. Por mais que o país tenha se reinventado, há sempre o desafio de superar a estrutura do Brasil colonial que paira sobre o presente e continua adiando o futuro que ansiamos”, afirmou a reitora Sandra Goulart durante a cerimônia, que está gravada no vídeo acima.
Para ela, o sentimento de déjà vu é recorrente na história do país. “Agora mesmo assistimos à ascensão do autoritarismo, à ameaça ao funcionamento das instituições, ao estrangulamento financeiro das universidades, ao culto à ignorância, enfim, vivenciamos o mito do eterno retorno”, argumentou. No entanto, apesar dos “prognósticos incertos”, a reitora deixou uma mensagem de otimismo e lembrou que cabe à UFMG, uma universidade pública, apresentar uma proposta na direção contrária: “Precisamos apostar na cultura, na ciência, na saúde pública, em um país próspero, em cidadãos livres e iguais. Tudo isso em interlocução com outros saberes e com aquilo que queremos para o futuro”, defendeu.
Convergências
O diretor de Ação Cultural, Fernando Mencarelli, coordenador do Festival de Inverno UFMG, também discorreu sobre o tema e sobre a proposta de investigar o Modernismo e as convergências entre 1822 – o ano da Independência do Brasil –, 1922 – marco inaugural do Modernismo – e 2022, quando serão comemorados, respectivamente, 200 e 100 anos desses dois eventos fundantes na história do país.
A 53ª edição foi planejada em parceria com o projeto MinasMundo, rede com mais de 50 pesquisadores brasileiros sob a coordenação de professores da UFMG, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Princeton dos Estados Unidos.
Pelo segundo ano consecutivo, a programação do evento ocorre em modo remoto devido às restrições sanitárias impostas pela pandemia de covid-19.
A abertura do 53º Festival de Inverno também reuniu o vice-reitor Alessandro Fernandes Moreira, a diretora adjunta de Ação Cultural, Mônica Ribeiro, os coordenadores do projeto MinasMundo, Eneida Maria de Souza, André Botelho e Maurício Hoelz, e os curadores da edição 2021 Festival, Marcos Alexandre, Fernando Rocha, Diomira Maria, Fabrício Fernandino e Verona Segantini.
O evento prossegue até 31 de julho, e todas as atrações, gratuitas, poderão ser acompanhadas no canal da DAC no YouTube. A programação está disponível no site oficial.
Invenção da grafia de vida
O livro Menino sem passado, recentemente publicado pelo escritor e pesquisador mineiro Silviano Santiago, foi tema de bate-papo entre o autor e a professora Eneida Maria de Souza, da Faculdade de Letras. Na conversa, Santiago, nascido em Formiga, destacou obras de autores como Conceição Evaristo, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Darcy Ribeiro, que, em sua visão, desenvolveram um memorialismo fora de cânones ocidentais, tema basilar de suas produções.
Para Santiago, os povos originários são escritores de suas próprias tradições e usam a memória e a ancestralidade como instrumentos de resistência. Essa disposição inventiva inspirou Menino sem passado e outras obras do autor. “O meu memorialismo é apenas parte de um movimento mais amplo de abdicar de uma centralidade do pensamento ocidental”, afirmou.
Em suas pesquisas sobre o memorialismo, Silviano Santiago avalia como centrais as reflexões sobre herança e o testamento: “Todos temos herança, mas nem todos temos testamento. Isso faz com que nossa grafia de vida tenha de ser inventada", pontuou.
Arnaldo Antunes: 'o real resiste, e o pulso ainda pulsa'
O último encontro da noite, Passar poesia, reuniu o compositor Arnaldo Antunes e a professora Lucia Castello Branco, da Faculdade de Letras. Ela fez um resgate da trajetória do músico e poeta, que atravessa o Modernismo, o Concretismo, o Tropicalismo, a banda Titãs e os Tribalistas.
Arnaldo Antunes relembrou seu primeiro contato com a obra de Oswald de Andrade, que considera uma referência em sua carreira. “A poesia de Oswald continua viva, com sua visão de descoberta do mundo, dos povos originários. É preciso voltar a ver com olhos livres, de surpresa”, ressaltou.
Durante o encontro, marcado pela exibição de vídeos de antigos shows do ex-Titã e leituras de poesias, Arnaldo Antunes revelou que, em seu livro mais recente, Algo antigo, se propôs a construir um entremeado de tempos entre passado, presente e futuro: “O que me moveu é o contraponto entre diferentes antiguidades, que são milenares e também um passado que aconteceu ontem”.
Em meio a análises políticas sobre o presente e reflexões sobre as possibilidades de futuro, Arnaldo Antunes manifestou sua esperança em um Brasil mais plural, parodiando os versos de uma conhecida música dos Titãs para justificá-la: “O real resiste, e o pulso ainda pulsa”.