Brasil perdeu o bonde da energia, lamenta pesquisador da UFMG
Para Ramon Molina Valle, da Engenharia Mecânica, país deveria investir no motor a etanol para reduzir dependência do diesel
Para superar a vulnerabilidade na área de combustíveis, o Brasil precisa investir no desenvolvimento de um motor nacional de combustão interna, específico para biomassas, defende o professor Ramon Molina Valle, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFMG. “Se a metade da frota de caminhões passasse a utilizar etanol, o país pararia de importar diesel”, assegura.
O pesquisador alerta, contudo, para a urgência do investimento em energias, área em que o Brasil está “mais atrasado do que a Índia, a China e as Coreias”. Em entrevista ao Portal UFMG, Molina afirma que o uso dos combustíveis fósseis ainda tem vida longa e que, no próximo século, será benéfica a coexistência de diversas fontes de energia, utilizadas de forma complementar, em diferentes situações e ambientes.
Ainda é viável investir em pesquisas em motores de combustão interna?
Sim, porque as mudanças não se dão de um dia para outro. Imagine se a partir de amanhã jogássemos fora esses motores e passássemos a usar carro elétrico. Primeiro, não teríamos essa tecnologia completamente disponível. Segundo, não haveria energia elétrica suficiente para abastecer todas as baterias. Terceiro, não estamos preparados para todo esse lixo, pois as baterias têm vida útil. Além disso, diferentemente do que se fala, os combustíveis fósseis não vão acabar em 50 ou 100 anos. O Brasil, em 2030, ainda vai estar descobrindo novas reservas de petróleo.
Acreditamos que vão surgir outras fontes de energia, como eletricidade e a célula de combustível, que utiliza o hidrogênio, mas vão existir ainda os motores de combustão interna, queimando combustíveis alternativos e também os fósseis. O que temos procurado, com as pesquisas, é aumentar a eficiência dos motores, o que significa reduzir o consumo e a emissão de gases. E ainda há tecnologias que não estão sendo aplicadas, como a injeção direta, já usada na Europa, e que as montadoras brasileiras ainda não incorporaram.
O que é preciso para aumentar essa eficiência?
Antes, cada tecnologia era aplicada praticamente de forma isolada, mas agora chegamos a um ponto em que precisam ser implementadas juntas, para cobrir toda a gama de funcionamento do motor. Outro aspecto importante: nenhuma das tecnologias aplicadas aos motores foi desenvolvida no Brasil, são todas das montadoras, nos países de origem, porque aqui não se investe em pesquisa.
O Brasil simplesmente deixou de investir em motores e em todas as formas de energia. Veja o exemplo da eólica: o país tem parques eólicos enormes, mas se uma dessas turbinas estraga, o conserto está condicionado ao contrato de manutenção com multinacionais. Isso é sério. Da mesma forma, a questão das ferrovias. Há quanto tempo os pesquisadores dizem que temos que investir em outra forma de transporte? Agora, com a paralisação dos caminhoneiros, viram o tamanho do problema. Mas já é tarde, perdemos o bonde.
O que ainda é possível fazer?
Digamos que o país não consiga implementar as ferrovias em 50 anos, mas consiga que a metade da frota de veículos de carga que hoje usa diesel passe a utilizar etanol, que é nosso e é uma biomassa. Com a metade dos motores desses caminhões a etanol, o Brasil pararia de importar diesel – 25% do diesel consumido no país é importado, e é caríssimo, por isso o subsídio.
No entanto, para que os caminhões usem etanol, é necessário melhorar a eficiência dos motores de combustão interna, e precisamos trabalhar nisso desde agora, porque essas tecnologias não se desenvolvem de um dia para outro, e elas não nos serão dadas por ninguém, precisamos gerá-las. Não existe motor brasileiro a álcool. O que se tem é um motor aperfeiçoado pelas montadoras com a conversão de gasolina para etanol, mas no Brasil nunca se trabalhou para obter um motor eficiente a álcool, aproveitando as propriedades do etanol.
Para ter um motor brasileiro, precisamos, no mínimo, adquirir experiência nessas tecnologias e testá-las – é o que estamos fazendo aqui na UFMG –, caso queiramos fazer no futuro um motor de combustão interna no Brasil. Outra meta importante é reduzir a diferença de consumo entre a gasolina e o etanol, que agora é de 30%. Se reduzíssemos essa diferença para 10%, o uso do álcool seria mais compensador.
Resumindo, existe campo imenso para pesquisa na área de motores de combustão interna, não apenas para uso em veículos, mas também para geração de energia em fazendas, por exemplo. E estou me referindo apenas à parte de termofluidodinâmica do motor. Sem contar as pesquisas de outras áreas, como novos materiais, design e projeto.
Atualmente, quase ninguém faz pesquisa de motor no Brasil, a não ser as montadoras ou as fabricantes de componentes. Nosso laboratório, aqui na UFMG, é um dos poucos centros que desenvolvem trabalhos nessa área, com algumas pesquisas próprias e ensaios por encomenda de algumas dessas empresas, que também é uma forma de adquirirmos esse know-how.
Uma dessas tecnologias é o terceiro ciclo – sempre usamos o ciclo otto (motor de ignição por centelha) e o ciclo diesel (motor de ignição por compressão). Mas desde dois séculos atrás estava comprovado que a eficiência poderia ser melhorada com um terceiro ciclo, o atkinson, que só agora estão conseguindo implementar, com a eletrônica.
Que linhas de pesquisa são desenvolvidas em seu laboratório?
Entre os projetos próprios, há uma pesquisa de sistema de ignição por pré-câmara, para reduzir uso de combustível, e outro trabalho com um sistema que melhora a combustão. São tecnologias para as quais não temos suporte das montadoras, que não têm interesse em contribuir com quem possa concorrer com elas. É muito difícil desenvolver um protótipo sem apoio da indústria. Mesmo assim, nesse momento temos duas teses que apresentam resultados interessantes e mostram que existe capacidade de desenvolver um sistema com maior economia e menor quantidade de emissões.
O Brasil tem de investir em pesquisas nessa área, mas está mais atrasado que a Índia, que a China, que as Coreias, que todo mundo, porque não investiu. Investir em desenvolvimento de motores é muito caro – para manter um único equipamento preciso de R$ 10 mil a cada três meses apenas para a reposição de hidrogênio e outros gases. Só uma das salas do nosso laboratório custou mais de R$ 5 milhões. Ela foi equipada há mais de dez anos, quando a Petrobras forneceu infraestrutura para as universidades brasileiras, com o intuito de formar uma rede de pesquisa nacional. O Brasil já lançou programas de incentivo, para que as montadoras investissem um pouco na pesquisa no país, por meio das universidades, como o Inovar-Auto [Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores], criado em 2012. Mas a ideia de fornecer bolsas para estudantes e recursos para projetos de pesquisa fracassou, porque a gestão deixou de ser técnica e se tornou política.
Faltam recursos?
O nosso Centro de Tecnologia da Mobilidade é um dos poucos que fazem pesquisa em desenvolvimento de motores. Muitos já desistiram, porque não dá em nada, não há financiamento. Editais de R$ 100 mil ou R$ 200 mil por projeto ou R$ 10 milhões para o Brasil inteiro são insuficientes, pois fazer pesquisas e manter um laboratório desses é muito caro. Por isso, os grandes laboratórios estão alugando as salas para as montadoras. Nós tivemos a sorte de ter essa estrutura, isso nos dá a chance de fazer pesquisa. E acreditamos que cuidar do motor a etanol era nossa obrigação. Ainda estamos batalhando e temos a meta de desenvolver um motor a etanol brasileiro de alta eficiência, isto é, com alto desempenho e baixas emissões.
Não se trata de eliminar o motor de combustão interna, mas chegar a um motor com eficiência máxima, aplicando tecnologia. A ideia é reduzir as emissões e alcançar um estágio em que se possa dispor de várias opções: carro elétrico, hidrogênio, gasolina, energia solar e biomassa, dependendo da cidade e das condições de cada lugar. O carro elétrico, por exemplo, é viável na Europa, em países de distâncias pequenas. Acredito que todas as tecnologias podem coexistir, e seu uso passará a ser uma questão de opção.