Em livro, autores LGBTQIA+ narram histórias da 'queerentena'
Comparações entre a atual pandemia e a epidemia de HIV/aids em décadas passadas e as dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência figuram entre os relatos
Houve quem remetesse à opressão racial e à herança colonial. Houve também quem abordasse a precariedade econômica, a insuficiência das medidas de mitigação e de proteção no contexto da pandemia na periferia, assim como feminismo, experiências de violência de gênero e discriminação no âmbito do trabalho. E houve ainda relatos daqueles que mergulharam no passado, associando a epidemia do HIV/aids, nas décadas de 80 e 90, com a atual crise sanitária.
Esses são alguns aspectos dos relatos que compõem o recém-lançado Histórias da queerentena, livro que reúne vivências, testemunhos e reflexões de dissidentes sexuais, relacionais e de gênero escritos em primeira pessoa durante a pandemia do novo coronavírus. Participam da obra 73 autores LGBTQIA+, entre os quais pessoas surdas, cegas e portadoras do vírus HIV. A publicação é da Editorial Centro de Estudios Sociales de América Latina (CES-AL), em colaboração com o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da UFMG e a Devires.
Estigmatização continuada
A obra foi organizada pelo filósofo Pablo Pérez Navarro, professor visitante de estudos queer/LGBT, gênero e sexualidade no NUH/UFMG. Ele chama atenção para a “continuidade de estigmatizações” que associam a soropositividade de pessoas com HIV às possibilidades de contágio pelo novo coronavírus por parte de grupos LGBTs. “Isso aparece tematizado no livro de diferentes formas. A pandemia também carrega significados morais, e, neste momento, intensificam-se mecanismos de vigilância e de comportamentos por meio dos quais se reforça a estigmatização de pessoas que podem ser percebidas como possíveis fontes de contágio”, diz o professor.
As medidas de distanciamento social tomadas durante a pandemia de covid-19 provocaram alterações radicais nas condições de vida e na rotina dos autores, suscitando diferentes inquietações. Entre essas condições, a obrigatoriedade de trabalhar fora de casa ou no lar (home office), o desemprego, o apoio familiar ou a falta dele.
Outra questão abordada na publicação são as transfigurações no espaço público provocadas durante a pandemia, que aparecem como dificuldades principalmente para pessoas com deficiência. Pablo Navarro cita o caso de uma ativista lésbica surda que depende da leitura labial para se comunicar – a obrigação de uso generalizado das máscaras representou um obstáculo no seu dia a dia. Outra autora, que é cega, salienta sua dificuldade de relacionamento, já que todas as suas experiências sociais são mediadas pelo toque, assim como sua mobilidade, que depende da ajuda de outras pessoas. "De certa forma, o livro mostra como a narrativa pode ser veículo para estabelecer relações com outros mundos que existem no interior do universo LGBTQIA+", explica o organizador.
Pontos de partida
O edital Histórias da queerentena, aberto pelo NUH/UFMG em junho deste ano, foi direcionado a pessoas do “espectro LGBTQIA+ brasileiras, comunidades BDSM, kinks, poliafetivas e anarquistas relacionais", segundo define Paulo Navarro. "Compreendo essas nomenclaturas como ponto de partida, não de chegada", ressalta o filósofo.
O evento de lançamento está gravado na página do NUH/UFMG no Facebook. A conversa com alguns autores, que foi conduzida pelo pesquisador Pablo Pérez Navarro, foi traduzida para Libras e está acessível para pessoas cegas. A curadoria dos relatos foi feita por Fran Demetrio, Gilmaro Nogueira, João Manuel de Oliveira, Pablo Pérez Navarro, Sara Wagner York e Tatiana Carvalho Costa. O download do livro Histórias da queerentena está disponível no site do NUH/UFMG.