'Está na hora de um novo manifesto de Córdoba', propõe Ana Lúcia Gazzola
Para a ex-diretora do Iesalc, a Cres 2018 deve ressignificar os princípios que orientaram a Reforma Universitária de 100 anos atrás
Para a ex-diretora do Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e o Caribe (Unesco/Iesalc), ex-reitora da UFMG e ex-secretária estadual de Educação Básica do Estado de Minas Gerais, professora Ana Lúcia Almeida Gazzola, a próxima Conferência Regional de Educação Superior (Cres) deve refundar os princípios da Reforma Universitária, realizada há 100 anos em Córdoba.
“Ela deve reforçar a importância da integração regional, da internacionalização solidária e da mobilidade entre os vários sistemas como forma de fortalecer as instituições e as redes", disse ela, nesta entrevista ao Portal UFMG sobre o evento que será realizado de 11 a 15 de junho.
Qual a expectativa da senhora em relação à Cres 2018?
Espero que a Conferência reúna os grandes atores da educação superior na América Latina e no Caribe e possibilite ressignificar os princípios que organizaram a atuação de nosso sistema nessas últimas décadas. E, particularmente, reafirme a importância da integração regional, da internacionalização solidária, da mobilidade entre os vários sistemas como forma de fortalecer as instituições e as redes e de possibilitar competir com vantagem de bloco com outros sistemas, outras regiões e outros grandes processos nesse mundo globalizado em que a cooperação é predatória e pouco solidária.
E que processos seriam esses?
São dois processos interligados. O primeiro é a lógica de distribuição de tarefas no mundo globalizado. O Banco Mundial, por exemplo, determina que os investimentos nos países periféricos devem se dar para ampliar a qualidade da educação básica. Longe de mim negar isso! Esse é um dos nossos grandes gargalos. Mas isso não exclui investimentos em educação superior, em desenvolvimento científico e tecnológico, em inovação. Não só inovação de processos, que é muito comum nos nossos países, mas de produtos, porque ela impulsiona o desenvolvimento sustentável. No campo da educação, aos países centrais e as suas universidades, é reservado o papel de provedores de projetos concretos de educação superior, relegando aos países periféricos, como os latino-americanos e caribenhos, o papel de consumidores desses produtos. Esses processos educativos se desvinculam das necessidades locais e regionais, das identidades culturais específicas de cada país. São projetos e processos pasteurizados, que poderiam estar em qualquer país e, portanto, em país nenhum, porque não respondem às necessidades e expectativas objetivas, concretas e específicas.
E o segundo processo...
O segundo processo diz respeito à universidade, que não pode responder somente ao específico. Ela tem de responder ao que é específico, mas à luz de utopias, de possibilidades. A universidade não vai responder só à lei de mercado, mas também não pode responder somente às exigências locais. Ela tem de passar um crivo universal, universalista, humanista, à luz de questões éticas e propositivas no campo do conhecimento a serviço da humanidade que tem de ter um âmbito maior. Portanto, a universidade fica nesse delicado equilíbrio entre o local e o universal, tensionada produtivamente por esses dois polos interligados, com interfaces e contradições.
Então, na avaliação da senhora, as universidades precisam se repensar, precisam refletir sobre si mesmas?
Eu acredito que está na hora de um novo Manifesto de Córdoba. É muito feliz essa coincidência de datas – 10 anos da Conferência Regional, em Cartagena, e os 100 anos da Reforma de Córdoba. Sim, é preciso ressignificar os princípios da Reforma de Córdoba à luz dos novos contextos.
Ainda há questões não equacionadas postas no contexto da Reforma Universitária?
Há questões que não foram equacionadas, esgotadas. Por exemplo, a autonomia universitária. Que autonomia é essa? Quando nós não temos controle sobre o orçamento, sobre regras fundamentais de transferência de recursos de uma área para outra, de contratação, de distribuição de tipos de cargos, de jornadas de trabalho... Então, qual é realmente a autonomia da universidade? Pedagógica dentro da sala de aula? Isso, sim, porque o país está dentro do Estado de Direito. O que não tivemos durante a ditadura militar, temos agora: liberdade pedagógica. Agora, também usar a liberdade pedagógica para fazer difusão partidária também é complicado. Há excessos. Mas o fato é que a autonomia universitária nunca se realizou em nenhum país da América Latina.
Mas houve avanços...
Sem dúvida, eu acho que esses grandes eventos internacionais tiveram impacto, sobretudo, no campo da cooperação. A ideia hoje de que a pesquisa tem de ser feita em rede, os grandes projetos que o próprio Brasil capitaneou dos laboratórios associados, dos institutos nacionais de pesquisas temáticas em tecnologia... Tudo isso educa as universidades e os pesquisadores, os docentes, os alunos e os técnicos, no sentido de que a produção hoje precisa ser feita em rede.
A senhora avalia, portanto, que as universidades e instituições de ensino superior latino-americanas e caribenhas devem priorizar parcerias e acordos de cooperação entre si?
Não, não é isso. É preciso que existam acordos de cooperação e parcerias com colegas dos países desenvolvidos, mas isso também precisa ser feito entre nós. Não só para diminuir as assimetrias regionais, mas também as assimetrias intra-regionais. Nós não podemos cair em uma lógica do salve-se quem puder. Eu luto pelos meus financiamentos, e os outros que não tenham nada. Isso não vai desenvolver a ciência nacional de nossos países, não vai promover o desenvolvimento tecnológico de cada nação. É necessário que exista um campo com muitos centros desenvolvidos, com muitas pesquisas de peso sendo realizadas, para que isso impulsione todo o processo de desenvolvimento científico e tecnológico, de inovação e transferência. A compreensão de questões como a cooperação solidária e a própria questão ambiental não pode se dar apenas na perspectiva nacional.
Um dos temas que serão debatidos durante a Cres é o avanço da educação privada. Como a senhora analisa essa questão?
As conferências regionais em educação superior têm se debruçado muito, de um lado, sobre a questão da mercantilização e sobre privatização, de outro. Eu não sou contra educação superior privada, eu acho que os sistemas têm que ser complexos, tem de ser híbridos. As instituições têm naturezas diferentes, mas todas precisam ser reguladas pelo poder público. O que torna a educação, o que mantém a educação como atividade de interesse público é a regulação pública, é a funcionalidade pública da educação como algo de interesse maior e coletivo. Trabalhar com a educação é uma concessão do Estado, e o Estado tem que regular a oferta privada de educação. E, hoje em dia, regular a oferta vai além das fronteiras nacionais. A boa notícia foi o Chile ter instituído a educação superior pública. O Chile só tinha educação superior pública ou privada pagas. E agora houve uma reversão no fim do último governo.
A senhora defende a educação pública e gratuita?
Eu sou claramente a favor da educação pública e gratuita, acho que ela é fundamental em todos os sentidos, desde a possibilidade de ascensão social, como também pelo papel do Estado nessa educação, pelo seu papel de referência. Ela é articuladora de todo um processo de desenvolvimento que tem de passar pelas dimensões pública e gratuita.
A senhora avalia que essa regra deve também ser aplicada às iniciativas de educação a distância?
É preciso regular a oferta de educação a distância, a oferta de cursos dados no país por instituições do exterior. Eu discordo e lutarei por toda minha vida contra qualquer pensamento que defenda a educação superior como uma mercadoria regulada em acordos comerciais. A consequência disso, além da desumanização do processo e da degradação da educação, que tem de ser algo de interesse maior, é desobrigação do estado com o financiamento da educação pública. Isso pode levar o setor privado nacional ou estrangeiro a receber o mesmo tipo subsídio ou de apoio que a educação pública recebe. As consequências disso seriam terríveis.
No Brasil, fundos privados têm ampliado, de forma agressiva, sua participação na área de educação. Como a senhora interpreta esse movimento?
Qualquer análise estatística feita na América Latina e Caribe sobre a distribuição do papel público e do papel privado em educação superior mostra que o Brasil desequilibra o sistema, desequilibra a rede regional. Os dados brasileiros falseiam a visão da região. Hoje, praticamente 80% da oferta se dá pelo setor privado em educação superior e 20% no setor público, que é, entretanto, de maior qualidade. O Brasil desequilibra toda e qualquer análise da América Latina e Caribe pelo fato de que a privatização da educação do ensino superior foi muito acelerada e contínua. Por isso, eu acredito, e assim espero, que um próximo governo deva empreender um forte movimento de regulação, estabelecendo os limites de atuação de cada segmento. É claro que, em cenário de crise econômica, é muito difícil fazer isso, porque o impacto nos orçamentos das instituições públicas é muito grande. Mas a demanda por educação superior existe, e há interesses poderosos representados, inclusive, no Congresso Nacional, grandes grupos de empresários de educação, fusões que estão ocorrendo, os fundos privados e assim por diante. E há essa ideia de que se gasta muito em educação superior. O Brasil não gasta muito em educação pública superior. As escolas públicas são as melhores, elas têm hospitais universitários, elas fazem a maior parte das pesquisas do país, elas formam as lideranças em todos os campos no país, elas fazem um trabalho de extensão e de resposta a problemas para solucionar problemas locais. O agronegócio no Brasil é o carro-chefe da economia nacional graças às universidades públicas brasileiras; o mesmo ocorre com a mineração e assim por diante. O papel das universidades públicas é muito importante. Educação não é gasto, é investimento.