Estudo estima incidência global da cardiopatia reumática
Com participação de professores da Faculdade de Medicina, levantamento mostra redução do número de casos em 25 anos, mas doença persiste em países pobres
A incidência da cardiopatia reumática – alteração das válvulas do coração provocada por infecções bacterianas não tratadas adequadamente, principalmente de garganta – caiu em todo o mundo em 25 anos, mas continua elevada em países africanos e asiáticos e regiões pobres de outros continentes. É o que constata estudo desenvolvido por consórcio internacional de pesquisadores publicado recentemente na revista The New England Journal of Medicine.
O trabalho, que contou com a participação dos professores Bruno Ramos Nascimento e Antônio Luiz Pinho Ribeiro, da Faculdade de Medicina, conclui que a incidência da doença está relacionada às más condições sanitárias, às aglomerações urbanas e à falta de acesso a cuidados médicos. Nos países mais pobres, o grupo percebeu que o número de indivíduos que convivem com a doença e a mortalidade causada por ela não diminuíram significativamente desde 1990. “Nesses lugares, os índices de morbidade e mortalidade são mais elevados”, afirma Bruno Nascimento, professor da disciplina de Cardiologia Clínica da Faculdade de Medicina.
Segundo o pesquisador, o artigo oferece uma estimativa mundial do número de pessoas afetadas pela doença. Com base em modelos analíticos epidemiológicos, dados de outras pesquisas, registros médicos, informações administrativas de hospitais e de atestados de óbito, o grupo concluiu que houve 347,5 mil mortes por doença cardíaca reumática, em 1990, e 319,4 mil mortes, em 2015, o que significa queda de 8%.
Em 1990, 9,2 de cada grupo de 100 mil pessoas morriam em decorrência da doença. Em 2015, esse número caiu para 4,8 por 100 mil habitantes, redução de 48%. Os países com o maior número estimado de óbitos em 2015 foram Indonésia (1,18 milhão), República Democrática do Congo (805 mil), Índia (119,1 mil), China (72,6 mil) e Paquistão (18,9 mil). As cinco nações concentraram 73% das mortes por cardiopatia reumática no período pesquisado. Em 1990 e 2015, respectivamente, 77% e 82% das mortes relacionadas à doença ocorreram em regiões endêmicas.
As maiores taxas de mortalidade estimadas – mais de 10 a cada 100 mil pessoas – foram registradas na República Centro-Africana, nos Estados Federados da Micronésia, em Fiji, na Índia, no Kiribati, no Lesoto, nas Ilhas Marshall, no Paquistão, na Papua Nova Guiné, nas Ilhas Salomão e em Vanuatu. Cerca de 1% das crianças em idade escolar nesses países endêmicos apresentaram evidências de cardiopatia reumática.
Diagnóstico precoce
O estudo mostrou que a descoberta da doença em crianças pode ser um trunfo para a redução das taxas globais de mortalidade por cardiopatia reumática, que é de difícil diagnóstico e pode levar anos para se manifestar. Os primeiros sintomas costumam surgir entre 20 e 30 anos de idade. Bruno Nascimento explica que, na infância, a febre reumática aparece como uma infecção normal, cujos sintomas são dor e inchaço nas articulações. Cerca de duas décadas depois, a doença se manifesta caso tenha ocorrido progressão para lesão das válvulas cardíacas, e o paciente apresenta cansaço, fadiga, sensação de palpitação, inchaço, dificuldade para realizar atividades do cotidiano e limitação física. Para o professor, o tratamento de infecções ainda na infância é um dos primeiros passos para a prevenção da cardiopatia reumática. Nas crianças com a doença, o tratamento precoce interrompe a sua progressão.
“Pacientes adultos precisam de acompanhamento especializado e procedimentos nas válvulas do coração, mas o mais importante é a prevenção primária, com o tratamento das infecções nas crianças, como as amidalites, para que não evoluam para uma cardiopatia reumática no futuro. A criança que tem a doença precisa ser tratada com injeções mensais de penicilina, que impedem sua progressão e o comprometimento do coração”, diz.
No Brasil, a incidência da cardiopatia reumática é alta (4,7 a cada 100 mil mulheres e 3,9 a cada 100 mil homens). Esses números devem aumentar quando forem incorporados dados de estudos em curso no país, que consideram a prevalência da doença em crianças e adolescentes. Além disso, quase metade das cirurgias cardíacas com tórax aberto realizadas por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) está relacionada à doença. “Um estudo como esse, que nos fornece números sobre a incidência da doença, é útil para a formulação de políticas públicas que tratem e previnam a cardiopatia reumática, principalmente quando falamos de crianças”, destaca Nascimento.
Ecocardiogramas simplificados
O artigo Global, regional and national burden of rheumatic heart disease, 1990–2015 é parte do estudo Global Burden of Disease (GBD), iniciativa mundial com sede em Seattle, nos Estados Unidos, que avalia o impacto mundial das doenças, por meio de cálculos que se valem de dados epidemiológicos gerados em cada país. A UFMG teve papel importante na avaliação das estimativas da cardiopatia reumática na América do Sul, por meio do projeto Provar, desenvolvido com a colaboração do Children’s National Health Center, de Washington, também nos Estados Unidos.
O Provar surgiu em 2014, quando grupo liderado pelo professor Bruno Nascimento implantou uma estratégia eficaz para o diagnóstico da cardiopatia reumática em Belo Horizonte e Montes Claros, por meio de ecocardiogramas simplificados realizados com o uso de aparelhos portáteis em escolas públicas de regiões de baixo poder aquisitivo das duas cidades. Os exames são realizados por enfermeiros e tecnólogos e lidos a distância, via telemedicina, por médicos brasileiros ou norte-americanos. As crianças com exames alterados são encaminhadas para o Hospital das Clínicas da UFMG ou para o Hospital Universitário de Montes Claros, para acompanhamento e realização de ecocardiogramas mais detalhados.
Até o momento, já foram avaliadas mais de 13 mil crianças, e a taxa de portadoras da doença se assemelha à registrada em alguns países africanos – 4,2% das crianças apresentaram alguma alteração sugestiva de cardiopatia reumática, e em 0,5% dos pacientes analisados, a alteração já possibilita o diagnóstico de cardiopatia reumática.
Artigo: Global, Regional, and National Burden of Rheumatic Heart Disease, 1990–2015
Autores: Bruno Ramos Nascimento e Antônio Luiz Pinho Ribeiro, da Faculdade de Medicina da UFMG, e David Watkins, Catherine Johnson, Samantha Colquhoun, Ganesan Karthikeyan, Andrea Beaton, Gene Bukhman, Mohammed Forouzanfar, Christopher Longenecker, Bongani Mayosi, George Mensah, Craig Sable, Andrew Steer, Mohsen Naghavi, Ali Mokdad, Christopher Murray, Theo Vos, Jonathan Carapetis e Gregory Roth.
Publicado na revista The New England Journal of Medicine