Identidade coletiva e solidariedade estimulam engajamento de prostitutas
Pesquisa realizada com mulheres que atuam na Rua Guaicurus revela que estigma da profissão ainda é obstáculo à participação política
![Hirosuke Kitamura Prostituta em hotel da Rua Guaicurus, na região central de Belo Horizonte](https://ufmg.br/thumbor/jyZOnii6PM5CQakSioNIQtcVcVw=/0x0:2258x1507/712x474/https://ufmg.br/storage/1/b/c/a/1bcae4bb5a0541cb85155aeff97442f2_15157840637735_894282116.jpg)
Em pesquisa de mestrado apresentada no ano passado, na Fafich, a cientista política Juliana Morais de Góes estudou a participação política das prostitutas da Rua Guaicurus, região central de Belo Horizonte. Em busca de melhores condições de trabalho e de combate ao preconceito, entre outros objetivos, elas se associam e fazem contato com ONGs e universidades.
As redes sociais e a identidade coletiva são, segundo Juliana, fatores fundamentais para a participação das prostitutas. O isolamento social torna necessária a criação de redes de solidariedade entre as trabalhadoras. “Quando algo ruim acontece com alguma delas, são as demais que acodem e ajudam. Isso contribui para criar uma identidade coletiva e estimula o processo de mobilização política”, diz a pesquisadora, que cursa doutorado em Sociologia na University of Massachusetts (EUA).
Além disso, a presença de ONGs e universidades na Guaicurus é muito importante para o engajamento. O contato com essas instituições possibilita o acesso a recursos financeiros e informações que antes não eram disponíveis. “Essas entidades também facilitam o contato com o movimento nacional de prostitutas. De outro lado, a participação em eventos municipais, estaduais e nacionais ajuda a expandir redes e dialogar com outros movimentos sociais”, explica Juliana de Góes.
A participação política, entretanto, enfrenta obstáculos, representados, sobretudo, pelo preconceito contra a baixa escolaridade das mulheres da Guaicurus, pela falta de tempo e de dinheiro e pelo estigma que marca a profissão. “Participar politicamente, o que por vezes implica exposição pública, é evitado para que o anonimato não seja violado. Ouvi relatos de mulheres que foram despejadas de casa ou agredidas na rua. A putafobia [o termo é usado no movimento e também no meio científico] faz as mulheres se esconderem como forma de proteção. Portanto, quando as prostitutas participam politicamente, elas não estão apenas se engajando no processo democrático, mas resistindo ao preconceito.”
![Arquivo pessoal Juliana: estudo etnográfico](https://ufmg.br/thumbor/EcV-RRa9cYJftnu1olu0wQpHtkI=/968x869:3040x4047/352x540/https://ufmg.br/storage/0/d/4/a/0d4a472261afd723d24d65ab3f451161_15157845774086_109003370.jpg)
Métodos combinados
Para desenvolver sua pesquisa de mestrado, Juliana Morais de Góes fez estudo etnográfico na Rua Guaicurus e na Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), utilizou dados de um survey da PUC Minas e realizou entrevistas em profundidade. Juliana, que começou com uma análise sobre a prostituição e o contexto histórico da Guaicurus, ressalta que o início da pesquisa também foi seu “encontro como mulher, negra, criada na periferia e pesquisadora da universidade com prostitutas de diferentes raças e etnias”. Ela analisou os dados da PUC Minas e entrevistou prostitutas, incluindo as lideranças, com foco nas trajetórias de militância.
O trabalho de triangulação das informações foi feito de maneira “interpretativista”, seguindo a técnica loose boundary concept desenvolvida por teóricas feministas. A perspectiva do feminismo, por sinal, orientou todo o esforço de investigação. “Trabalhei de acordo com os preceitos de epistemologia que vai contra a objetificação do sujeito de pesquisa e contra uma ideia patriarcal e colonial de racionalidade, respeitando saberes e práticas tradicionais”, afirma Juliana de Góes.
A pesquisadora salienta também que o amplo diálogo com as mulheres da Rua Guaicurus possibilitou a produção colaborativa de conhecimento e que o diálogo é “uma chave para a não objetificação”. Ela destaca que as mulheres com quem trabalhou têm conhecimentos muito valiosos sobre a atividade em si, sobre a relação entre migração e prostituição, sobre tráfico de mulheres e de órgãos. “É uma realidade contra a qual elas lutam”, ressalta Juliana. “Esses saberes são importantíssimos para a fundamentação de políticas públicas, mas o preconceito relacionado à pouca escolaridade faz as pessoas tratarem as prostitutas como incapazes e tentarem excluí-las dos processos políticos”, enfatiza.
Racismo
Juliana de Góes conta que a pesquisa deu-lhe mais segurança sobre a defesa de posições como a de que “qualquer debate sobre prostituição precisa incluir as prostitutas”. Ela lembra que ocorre com as prostitutas algo similar ao que se deu com as mulheres negras: há feministas brancas que tentam excluir mulheres negras do debate e há feministas que tentam excluir as prostitutas. “Tal similaridade não me espanta, já que no Brasil há um número significativo de prostitutas negras. Além disso, a criação do mito da prostituta como mulher inferior é muito semelhante à qualificação do negro como inferior. Por isso, vejo a exclusão dessas mulheres do debate, principalmente no que tange à legislação, como uma política racista”, afirma a pesquisadora, acrescentando que a criminalização da prostituição tem gerado efeitos extremamente negativos sobre a vida das mulheres negras.
Dissertação: Corpo, autonomia e associativismo: participação e as prostitutas da Guaicurus
Autora: Juliana Morais de Góes
Orientador: Leonardo Avritzer
Defesa em fevereiro de 2017, no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Fafich