Pesquisa e Inovação

‘Literatura ajuda a compreender um outro que é apenas diferente’

Romena Cristina Cheveresan, que estuda autores de grupos imigrantes e étnicos nos EUA, fará palestra segunda, no campus Pampulha

Cristina Cheveresan:
Cristina Cheveresan: relações com memória e história pública e privadaArquivo pessoal

A ficção envolve um tipo de compreensão empática que pode ajudar a desconstruir estereótipos e a entender mais profundamente um outro que não é necessariamente ameaçador, mas apenas diferente, defende a pesquisadora romena Cristina Cheveresan. Segundo ela, “a literatura pode ensinar emocionalmente lições sobre humanidade e valores e dilemas fundamentais que não costumam ser discutidos em obras teóricas ou discursos oficiais”.

Cristina Cheveresan, vinculada à West University of Timisoara, em seu país natal, vai participar da próxima edição dos Encontros transdisciplinares (segunda, 25, às 14h, no auditório do CAD 2, campus Pampulha), ao lado do professor Elcio Cornelsen, da Faculdade de Letras da UFMG.

Nesta entrevista, concedida por e-mail, ela aborda, entre outros temas, a literatura feita por imigrantes e integrantes de grupos étnicos, seu interesse por autores de origem latino-americana nos Estados Unidos e pela escrita de mulheres e o debate em sala de aula sobre os resultados de suas investigações.

Quais são os principais papéis da literatura nesses tempos de grandes movimentos migratórios? E quais são as principais características da literatura feita por imigrantes?
Independentemente de lugar, época ou circunstâncias, a literatura é essencial para conectar pessoas, povos e culturas, que podem, com generosidade e flexibilidade de imaginação, facilmente transcender fronteiras físicas e mentais. Muitas vezes, a literatura pode funcionar como documento ou testemunho e pode preservar e afirmar elementos da herança cultural. Ela pode dar voz àqueles que tiveram silenciadas sua história e sua realidade social, servindo como forma de lidar com vários tipos de trauma e superá-los. No caso da migração, desenraizamento, deslocamento, transformação são conceitos essenciais, e a literatura pode, de forma criativa, registrar, explorar e explicar não apenas fenômenos sócio-históricos como esses, mas também as formas pelas quais eles afetam quem passa por tais experiências.

"A literatura pode ensinar emocionalmente lições sobre humanidade e sobre valores e dilemas fundamentais que não costumam ser discutidos em obras teóricas ou discursos oficiais"

Que entendimentos a literatura pode oferecer sobre a história cultural de grupos étnicos e imigrantes nos Estados Unidos?
A literatura não existe isoladamente. Ela está profundamente enraizada na história e no contexto, que ela reflete, transforma e transpõe em formas ficcionais, mas dos quais, ainda assim, não escapa totalmente. Para grupos étnicos e imigrantes nos Estados Unidos, a literatura é ferramenta valiosa para manter viva sua herança cultural e também derrubar muros e construir pontes que ajudem a situá-los em uma nação que eles tentam tornar mais rica com sua contribuição cultural.

Ao mesmo tempo que tentam se ajustar a uma nova cultura, escritores imigrantes e étnicos têm uma oportunidade efetiva de ressaltar elementos de sua experiência que podem ser menos – ou nada – conhecidos. A compreensão empática que a ficção envolve pode contribuir para a desconstrução de estereótipos e para um entendimento mais profundo de um outro que não é necessariamente ameaçador, mas apenas diferente. A literatura pode ensinar emocionalmente lições sobre humanidade e sobre valores e dilemas fundamentais que não costumam ser discutidos em obras teóricas ou discursos oficiais.

Julia Alvarez:
Julia Alvarez: paradoxos dramáticos do exílioutexas.com

De que formas autoras como Cristina García [de origem cubana] e Julia Alvarez [dominicana], temas de sua apresentação na UFMG, tratam a experiência de imigrantes e o fato de que elas deixaram para trás regimes opressivos?

Vou abordar na UFMG os romances de estreia de Cristina García e Julia Alvarez: Dreaming in cuban (Sonhos cubanos, na edição brasileira), de 1992, e How the Garcia girls lost their accents (1991), respectivamente. Pioneiros de uma grande onda de escrita latina nos Estados Unidos, os livros referem-se à fuga das famílias dos protagonistas de regimes ditatoriais em seus países de origem, além de reflexões sobre a experiência subsequente de vida longe da terra natal, que envolve uma mistura de sentimentos complexa e controversa.

A influência da (auto)biografia sobre a ficção é inegável, ainda que o propósito primordial não seja recriar trajetórias pessoais, mas ilustrar, de maneira informada, a natureza desafiante da formação transcultural, as dificuldades de se articular em novo contexto social, os paradoxos dramáticos do exílio (liberdade versus nostalgia) e os múltiplos caminhos pelos quais os mesmos eventos históricos podem transformar a existência de diversos indivíduos, dependendo de circunstâncias variadas. A investigação psicológica de personagens que vivem entre dois mundos é central para compreender o comportamento de imigrantes de primeira e segunda gerações nos Estados Unidos, uma vez que eles oscilam constantemente entre terras de origem, negociam pertencimento às antigas e às novas comunidades, são forçados a se redefinir o tempo todo e investigam suas relações com o passado, a história privada e pública e a memória.

"Num universo em transformação constante, com fronteiras fluidas e fortes movimentos migratórios, a escrita étnica e imigrante trata de temas que muitos leitores podem reconhecer e com os quais podem se identificar"

Como surgiu seu interesse pelas literaturas latino-americanas?
A Romênia é uma ilha de latinidade no Leste da Europa, o que cria, por si só, um ponto de interesse: há uma potencial comunhão de espírito, mentalidade e caráter. Timisoara, a cidade onde nasci, sempre foi um caldeirão em que grupos étnicos e culturas da região do Banat coexistiram harmoniosamente durante séculos. Tudo isso me fez sensível a questões relacionadas ao multiculturalismo de zonas de contato e à intrincada rede de conceitos e realidades que emerge como resultado do atravessamento de fronteiras, da formação de identidade transnacional etc. Professores como Werner Sollors [alemão radicado nos EUA] e Ibis Gomez-Vega [cubana radicada nos EUA] estimularam esse meu interesse. Só lamento ainda não ter estudado autores de origem brasileira vivendo nos Estados Unidos e com obras em inglês. Espero ter oportunidade de incluir seus trabalhos em minhas aulas e análises teóricas. 

Philip Roth: novo foco de estudos
Philip Roth: novo foco de estudos Nancy Crampton (domínio público)

A senhora tem trabalhado muito com autoras mulheres (Toni Morrison [norte-americana que aborda a vida de mulheres negras], Alice Walker [norte-americana, ativista feminista, autora de A cor púrpura], além de Cristina García e Julia Alvarez). Por quê?
Por um lado, desenvolvi com o tempo uma afinidade especial, à medida que percebi como questões de gênero aplicam filtros adicionais às formas como experiências imigrantes e étnicas são capturadas na ficção. Por outro lado, algumas de minhas abordagens prediletas são a contextualização e o comparatismo, e foquei em diversos escritores homens, como [o dominicano-americano] Junot Diaz, [o coreano-americano] Chang-rae Lee e John Okada [considerado o primeiro escritor nipo-americano]. Minha paixão mais recente, entretanto, é pela obra do surpreendente Philip Roth [nascido nos Estados Unidos], a quem pretendo dedicar uma monografia no futuro próximo.

"A influência da (auto)biografia sobre a ficção é inegável, ainda que o propósito primordial não seja recriar trajetórias pessoais, mas ilustrar, de maneira informada, a natureza desafiante da formação transcultural, as dificuldades de se articular em novo contexto social, os paradoxos dramáticos do exílio (liberdade versus nostalgia)"

Como tem abordado as narrativas sobre preconceito racial?
Esse tipo de narrativa é parte importante das histórias de imigração, na medida em que as histórias, frequentemente, põem em primeiro plano confrontos culturais marcados por esse elemento. Contudo, existem narrativas desse tipo que não envolvem necessariamente o deslocamento físico. Criar estereótipos é, em primeiro lugar e acima de tudo, mental, e construtos sociais são geralmente resultados artificiais de mentalidades e vieses profundamente enraizados. Há muito tempo, exploro em minhas aulas, por exemplo, a obra To kill a mockingbird (O sol é para todos, no Brasil), de Harper Lee. Trata-se de um romance sobre discriminação, alienação e marginalização, ambientado no Sul dos Estados Unidos, extremamente bem escrito e inteiramente documentado. Ele não trata de imigração, mas de alteridades de diversas naturezas.  

O que tem chamado mais sua atenção nos debates com seus alunos sobre suas investigações?
Os estudantes são a maior motivação do meu esforço acadêmico e um barômetro altamente sensível para o interesse que minhas análises literárias podem suscitar. Ao longo dos anos em Timisoara, e também nos intercâmbios e eventos fora da Romênia, senti sempre a força da resposta e a disponibilidade para abraçar o que, hoje, muitos jovens percebem como uma literatura própria. Num universo em transformação constante, com fronteiras fluidas e fortes movimentos migratórios, a escrita étnica e imigrante trata de temas que muitos leitores podem reconhecer e com os quais podem se identificar. Por isso, as reações deles a esses textos tendem a ser genuinamente envolvidas e informadas, e vão além de considerações meramente técnicas, estéticas e estilísticas. Os textos inspiram debates sobre elementos extraliterários como biografia pessoal, história comum, determinações sociais etc. Esse diálogo aberto valida ou transforma minhas teses e hipóteses e vem produzindo trabalhos de graduação, mestrado e doutorado.

A seu ver, qual é o principal objetivo da conexão entre literatura e outros campos?
No mundo em que vivemos, a interconexão é um termo-chave e um fato essencial. Logo, abordagens tradicionais para a literatura, que podem ser muito úteis e esclarecedoras, podem também parecer obsoletas para gerações de leitores que são expostos incessantemente a uma multiplicidade de mídias e discursos. É crucial, portanto, tratar a ficção nas suas relações com os estudos culturais, sociológicos, antropológicos, filosóficos e políticos, para enfatizar sua conexão com as realidades que formaram muitos grandes escritores, que contribuíram não apenas para aprimorar a literatura como forma de expressão artística, mas também para seu impacto sobre a consciência e o cuidado sobre os espaços habitados – pelo corpo, pela mente e pelo espírito. É uma experiência altamente benéfica para estudantes e educadores olhar a literatura através de lentes interpretativas múltiplas e expandir seu conhecimento para mais de um campo.

Itamar Rigueira Jr. / Colaborou a professora Andréa Mattos, da Faculdade de Letras da UFMG