‘Literatura possibilita vasculhar as dobras da realidade’, afirma Maria Esther Maciel
Professora da Letras lança revista de literatura e artes que se coloca em posição de resistência às radicalizações do contemporâneo
A poeta Maria Esther Maciel, professora da Faculdade de Letras, está à frente da revista Olympio, publicação independente que enfatiza, de um lado, a produção literária que dialoga com outros campos artísticos e, de outro, as demais modalidades artísticas que estabelecem alguma relação com o fazer literário. Independente e autofinanciada, a publicação – de periodicidade semestral – é uma realização da professora em parceria com o jornalista, editor e escritor José Eduardo S. Gonçalves, com o arquiteto e escritor Maurício Meirelles e com o designer gráfico, pesquisador e escritor Júlio Abreu. A Editora Autêntica assumirá a distribuição nacional da publicação.
Olympio tem lançamento marcado para este sábado, 19, às 11h, na Livraria da Rua, que fica na Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi. Em junho, será a vez de Portugal receber a revista, em evento previsto para o dia 7 de junho, em Lisboa, na centenária Livraria Ferin, no Chiado. O lançamento em Portugal está relacionado com parceria já firmada pela publicação com a Associação Oceanos, sediada naquele país e responsável pelo Prêmio Oceanos de literatura de língua portuguesa.
Maria Esther Maciel conversou com o Portal UFMG sobre a importância das publicações literárias e artísticas para o conturbado contexto social e político contemporâneo, assim como sobre o valor de resistência das artes, em geral, e da literatura, mais especificamente, face às vicissitudes de um tempo que parece cada vez mais se radicalizar. Para ela, cabe às artes “defender princípios, ideias e propostas sem sucumbir à mera militância direta”. "Estamos muito intoxicados de realidade", analisa. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Qual é a importância das revistas literárias para o contemporâneo? O que faz elas seguirem existindo – e surgindo –, mesmo em tempos de internet e redes sociais?
Em várias épocas, em vários contextos, as revistas literárias sempre estiveram vinculadas a movimentos literários. Elas são inseparáveis dos agrupamentos, dos coletivos, dos movimentos, das vanguardas. Nesse sentido, eu vejo a revista literária – ou a revista cultural, de artes, os suplementos – como esse espaço de reconhecimento de uma determinada geração, de reconhecimento de um determinado momento, como ocorreu na época do Modernismo, das vanguardas dos anos 1950, movimentos que também eram ligados a revistas. Em Minas Gerais, particularmente, e em diferentes momentos de nossa história literária e artística, tivemos várias revistas literárias importantes, que ofereceram grandes contribuições. Elas foram o lugar de atuação [do intelectual] na esfera cultural do estado, da cidade. Tivemos a revista Tendência, ligada ao concretismo em Minas. A Edifício, a Leite Criôlo, a Revista, de Carlos Drummond de Andrade. A Complemento, a Vocação, a Estória. A Revista Literária do Corpo Discente da UFMG [que há pouco mais de um ano ganhou uma edição comemorativa dos 50 anos de sua fundação]. E o Suplemento Literário de Minas Gerais, que não é uma revista, mas cumpre ainda hoje função parecida. Lembro que na Faculdade de Letras, em 1984, quando eu ainda estava na graduação, eu criei – junto com duas colegas, Maria Inês de Almeida e Carolina Marinho – um jornal literário chamado Expresso. Ele durou pouco, mas naquele momento já acontecia como um interessante exercício literário-cultural.
De onde surgiu a ideia de empreender, hoje, uma revista independente, sem subsídios nem patrocínios, focada exclusivamente em produções literárias e artísticas?
O que nos moveu foi uma necessidade de estabelecer posição frente à situação que predomina no país. E que posição é essa? É a de tomar a literatura e as artes como um ato de resistência ao que está acontecendo no Brasil e, também, no mundo. Trata-se de uma posição contra o dogmatismo, contra a polarização, contra a mediocrização; trata-se de uma maneira de resistir a um cenário de intolerância e desmandos. Penso que estamos muito intoxicados de realidade, e a literatura surge como esse espaço para o exercício da imaginação, da liberdade, da multiplicidade, fora dos cerceamentos ideológicos, das polarizações. Sei que uma revista, neste momento, pode parecer um ato de loucura. Mas não deixa também de ser um ato de resistência. Precisamos arejar um pouco.
Qual a importância da arte e da literatura, em especial, diante das particularidades do nosso tempo?
Elas possibilitam o exercício da imaginação e da lucidez crítica. A literatura nos leva a ver o mundo, a realidade, para além daquilo que é dado de forma imediata, visível. Ela nos possibilita vasculhar um pouco as dobras da realidade, buscar aquilo que pulsa para além do imediato. Falo da literatura e das artes, em geral. Vivemos um tempo em que tudo está muito fervilhante: são muitos os sujeitos políticos no mundo, sujeitos de diferentes identidades, que estão aí esperando realmente o seu lugar – e não apenas nas margens, às quais eles sempre foram historicamente relegados. Este é um momento de reconhecer e buscar a literatura, a arte, não apenas em pequenos espaços sociais, culturais, mas também naquilo que durante muito tempo ficou à margem. É o tempo de trazer à tona esses outros sujeitos. Mas não apenas pela condição deles, e sim pela contribuição que eles oferecem e podem oferecer.
O que você quer dizer com “condição” e “contribuição”?
Tenho minhas reservas em relação à arte militante, à arte que se coloca a serviço de uma ideologia. Na minha opinião, é possível [no sentido de louvável, no aspecto artístico] defender princípios, ideias e propostas sem sucumbir à mera militância direta. E acho que o J. M. Coetzee faz isso muito bem. Ele é o meu grande mestre nesse campo da política; ele mostra como a literatura pode interferir na política, na realidade, no mundo explícito sem necessariamente ser “engajada”. Isso eu aprendi com Coetzee, com Octávio Paz, com Drummond.
No lema da revista, “não há o que não haja”, parece haver uma ambiguidade entre o verbo haver e o verbo agir; o primeiro parece atravessado pelo segundo, em um modo imperativo, um modo de ação. De onde vem esse lema? Como essa frase toca você, particularmente?
Essa frase está em Guimarães Rosa, embora de forma mais diluída. Não está como uma “frase a ser citada”. Ela retoma algo que, ao que parece, também faz parte de certo imaginário popular, um ditado popular. E é uma frase que me toca no sentido de que tudo é possível – mesmo o impossível. A ideia é que você pode, de alguma forma, trazer [por meio do artístico] o que quiser para a esfera da realidade. Então entra aí um traço de utopia. Em um momento tão distópico, de tanto desalento, em que predominam as dicotomias, a ideia é poder pensar naquilo que existe ou pode existir: “não há o que não haja”. A revista tem esse propósito de trazer de tudo um pouco, de se abrir às surpresas e não se fechar àquilo que é tido como a única possibilidade.
Há também a particularidade do nome da publicação, uma homenagem explícita ao seu marido, seu grande parceiro intelectual e afetivo.
Sim, o nome é uma homenagem ao José Olympio, que morreu em 2013, e que foi um homem muito ligado à literatura, às artes. Era um homem com uma biblioteca magnífica, uma paixão pelas palavras, pelo mundo intelectual, o mundo artístico. Aprendi muitas coisas com ele, em diversos campos do conhecimento, e achei que a melhor maneira de homenageá-lo seria pela via literária, a via artística, ou seja, colocá-lo onde ele sempre prezou muito, o lugar da literatura e das artes. Coincidentemente, foi José Olympio quem apresentou [a fotógrafa inglesa, naturalizada brasileira] Maureen Bisilliat à obra de Guimarães Rosa e fez despertar o seu interesse pelo sertão. Nesse sentido, a revista ser aberta com um texto sobre a obra dela é particularmente pertinente. Quando eu pensei essa revista, pensei imediatamente nela.
Existe uma linha mestra em direção à qual os textos desta primeira edição convergem? Como a revista funciona internamente? Como foi o processo de escolha dos autores participantes?
As escolhas foram, em sua maioria, afetivas, mas queríamos autores que transitassem em diferentes campos, não apenas na literatura, e que aqueles que produzem em outros campos tivessem um forte vínculo com a literatura. Buscamos convergir várias gerações e várias linguagens, várias práticas – mesmo dentro da literatura. Há escritores como o sul-africano J. M. Coetzee, que aparece com um texto literário inédito no Brasil, o qual foi apresentado na abertura de um congresso na Holanda e publicado num catálogo da Bienal de Veneza, em 2013. Junto dele há um português, o Luís Rainha, uma argentina radicada no Brasil, a Maria Angélica Melendi, e Iris Monteiro, mexicana que mora nos EUA. Ao mesmo tempo, temos um brasileiro filho de mãe hispano-guarani e pai carioca, Douglas Diegues, que só escreve em portunhol selvagem, assim como temos autores como Letícia Feres, que nem publicou seu primeiro livro, previsto para este ano, e Domingos de Souza Filho, poeta que nunca teve nenhum poema seu impresso na vida. Ambos foram meus alunos na graduação em Letras na UFMG, e eu os trouxe para a revista em razão exclusiva do mérito de seus textos. Ao mesmo tempo, nesse mesmo plano, aparecem o escritor Silviano Santiago e a Maureen Bisilliat, que são autores de outra geração, ambos na faixa dos 80 anos, consolidados. Portanto, há essa ideia de confluência de gerações. No caso da Olympio, pensamos bastante essa confluência temporal – a ideia do contemporâneo como esse espaço em que se cruzam tradições, um tempo para o qual convergem passado e futuro.