Opinião

[Opinião] A poesia feminista de Beth, Lúcia, Sônia e Thais

Mirian Chrystus, da Comunicação, revisita a produção literária das quatro poetas, que lançaram olhares sensíveis sobre as desigualdades sociais e de gênero durante os anos de chumbo

Beth, Lúcia, Sônia e Thais:
Beth, Lúcia, Sônia e Thais: quarteto fará, no âmbito do Sábado Feminista, um balanço do impacto do feminismo na vida e na poesiaFoto: Cristina Lima

Éramos jovens estudantes da Fafich, na rua Carangola nos anos 1970, quando travamos os primeiros contatos com o pensamento feminista e de esquerda por meio dos livros da sua bela biblioteca ou por discussões em sala de aula, em grupo ou em conversas no famoso murinho que reunia alunos de todos os cursos. Eu mesma, estudante de Jornalismo, ganhei, de um conhecido que estudava Ciências Sociais e era militante do movimento estudantil, um exemplar da obra A nova mulher e a moral sexual, de Alexandra Kollontai.

A Fafich era um centro de resistência e uma usina de ideias críticas e avançadas naqueles anos de chumbo de uma ditadura militar que prendia, desaparecia, torturava e matava. 

Em 1975, Ano Internacional da Mulher, promovemos o Mulher em debate, no DCE da UFMG, primeiro seminário feminista em Minas Gerais. Entre as convidadas, Branca Moreira Alves, autora do clássico O voto feminino no Brasil e Therezinha Zerbini, vinculada ao então recém-criado Movimento Feminino pela Anistia.

Lúcia Afonso, estudante de Psicologia, tinha lançado, em 1973, uma revista de poemas com o sugestivo nome de Silêncio – tão sugestivo que foi fechada em 1975 pela censura que desconfiava de metáforas. Beth Fleury, estudante de Jornalismo, escrevia poemas e colaborava com a Silêncio. Sônia Queiroz e Thais Guimarães, nos anos 1980, na Faculdade de Letras, escreviam poemas, participavam de oficinas de literatura e discutiam o lugar da mulher na sociedade. Thais Guimarães integrou a chamada geração mimeógrafo e vendia suas publicações artesanais nos bares da noite belo-horizontina.

As quatro poetas observavam com olhar atento e sensível as profundas desigualdades sociais da sociedade brasileira, escamoteadas pelo regime militar. Mas, desde muito antes, ainda adolescentes, já tinham percebido também as desigualdades entre homens e mulheres – seja na educação recebida por meninos e meninas, seja na falta de liberdade das moças. Os anos 1970 e 1980, período em que a cena política e poética era dominada por homens, foram "um tempo que exigia posicionamento", destaca Thais Guimarães.

Em 18 agosto de 1980, depois do assassinato de duas mineiras por seus maridos, Maria Regina de Souza Rocha e Eloísa Ballesteros, as vozes feministas e progressistas convergiram para um ato público na Igreja São José. A manifestação foi um protesto às mortes de mulheres quando ainda não existia o termo "feminicídio" e teve cobertura da mídia nacional.

O ato, início formal do movimento Quem Ama Não Mata, foi marcado por poemas de cunho feminista. Adélia Prado, que acabara de publicar Bagagem, seu primeiro livro de poemas, estava lá.  Dinorah Carmo, também ex-estudante da UFMG, futura primeira presidente de um grande sindicato de jornalistas no Brasil, interpretou Sobre um fundo de pano roxo, de Suzana Nunes de Moraes. Beth Fleury declamou seu poema, Aos homens nosso mel e nosso fel, que se tornou um clássico. Ele falava da revolta das mulheres mantidas caladas através dos tempos, um jarro, que “de tristeza não demora a derramar".

Encerrei o ato com a leitura do manifesto das mineiras que começava com um poema anônimo da Idade Média em que o senhor, ao partir para as Cruzadas, entrega a chave do cinturão de castidade à sua senhora, porque, segundo ele, "maior que a dor de vos perder, é a dor de vos deixar presa nesses ferros". Isso é um gesto de amor, dizíamos, no adro da Igreja São José. E completávamos: em Minas, mil anos depois, os homens matam as mulheres que querem deles se separar. A presença tão forte da poesia em nossa manifestação se dá pela crença na ideia de que o convencimento acontece não só por argumentos racionais, mas também pela emoção provocada pela arte.

Dali em diante, Sônia, Thais, Lúcia e Beth mantiveram o vínculo com a escrita poética e construíram carreiras sólidas em suas áreas de atuação: Sônia Queiroz deu aulas na Faculdade de Letras da UFMG e é editora; Lucia Afonso deu aulas no curso de Psicologia e se tornou psicanalista; Thaís Guimarães atua como escritora e editora; Beth Fleury é socióloga da Fiocruz Minas e pesquisadora. Eu me tornei professora do Departamento de Comunicação da Fafich.

Quarenta e quatro anos depois do ato público da Igreja São José, as quatro poetas fazem, no projeto Sábado Feminista, um balanço do impacto do feminismo na vida e na poesia. Uma reflexão que se dará por meio da leitura de poemas neste evento que é uma parceria entre o movimento Quem Ama Não Mata e a Academia Mineira de Letras. A poesia está no ar.

Serviço
Evento: Sábado Feminista: Poesia e feminismo - a poética das mulheres
Quando: 21 de setembro, às 9h30 (abertura dos portões)
Onde: Academia Mineira de Letras (rua da Bahia, 1466)

Leia uma amostra da produção poética dessas quatro mulheres

Catártica
Thais Guimarães

descascar até o osso
sentir as falanges
em última instância
na jugular
apertar mais o pescoço
até sangrar a língua
até que morra à míngua
e se feche o ciclo de tudo
o que corrói

Meninas
Lúcia Afonso

Dentro de uma casquinha tão fina,
Uma menina
Cresceu e, dentro da menina,
Agigantada havia outra
– Menina que crescia –
Pois sempre dentro dela havia outra
E era, então, sua semente
Própria e sua mãe,
Umas das Outras.
Toda vez que crescia ela gerava
Um âmago de vida no íntimo da Vida

Das abandonadas
Sônia Queiroz

ele sempre vinha
me trazendo um prêmio
a caça para o assado
a acha pro fogo e a faca
para cortar
cebolas

ele sempre vinha
me trazendo prendas:
e eu adivinhava o gosto
e adivinhava o gesto
para acertar
em cheio

ele sempre vinha me trazendo festa:
uns beijinhos e delícias
e era queijo e era vinho
para dançar
boleros

ele sempre vinha
me trazendo a sorte:
teríamos vários filhos
e uma junta de bois
para criar
castelos
hoje preparo a comida
e como em silêncio:
quase nunca choro
às vezes canto

Herança
Beth Fleury

No tempo em que as meninas eram cândidas
E seminuas
Vagavam pelos cômodos iluminados
Com círios nos olhos e calor nas mãos

No tempo em que todas as meninas eram belas
E ofegavam entre as orações de domingo
No tempo dos pais que fumavam mistura fina
E sabiam de tudo

No tempo em que as mães
Sabiam seus lugares certos
E eram as criaturas mais lindas
No tempo em que os maridos traziam
Suas verdades embrulhadas do açougue
Elas brilhavam feito toucinho na panela
Doávamos outro para o bem do Brasil

E não chorávamos
Ao matar a galinha
Para a canja do avô

O beijo da prima obscena no quarto fechado
Tinha gosto de cuspe
Não lavávamos a mancha secreta
Ela queimaria mais tarde
Na alma das moças coradas

Do tempo em que as meninas
tinham dúvidas discretas
E as mães
apontavam o destino feito punhais
Herdei a tinta das paisagens
Para compor meu inventário

Mirian Chrystus | professora aposentada da UFMG e coordenadora do movimento Quem Ama Não Mata