Opinião

[Opinião] Reprodução humana em crise: causas desconhecidas

Faltam estudos interdisciplinares para mapear e integrar os fatores sociológicos, biológicos e ambientais associados ao fenômeno, escreve o professor Luiz Renato de França, do ICB

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Entre os possíveis fatores que podem contribuir para o declínio nas taxas de fecundidade estão os de ordem biológica e socioeconômica Imagem: Matheus Espíndola (gerada por IA)

As taxas de fecundidade despencaram nas últimas décadas, deixando a reprodução humana abaixo do nível de reposição (2,1 filhos por casal) em todas as regiões industrializadas do planeta. Em consonância com a tradição da pesquisa demográfica, o declínio nas taxas de fecundidade tem sido vista como reflexo de uma transição cultural associada às mudanças sociais e econômicas dos tempos modernos. No entanto, essa teoria não forneceu evidências concretas que ligassem fatores socioeconômicos específicos ao declínio nas taxas de fecundidade. Outras hipóteses que sugerem que a menor fecundidade (a capacidade biológica de se reproduzir) poderia contribuir para taxas de fecundidade mais baixas têm sido tipicamente ignoradas na pesquisa demográfica.

Os governos frequentemente respondem às propostas de estudos demográficos para aumentar as taxas de fertilidade oferecendo os chamados bônus especiais por nascimento de bebês. Esses programas, porém, não resultam em taxas de natalidade mais altas. E a rápida diminuição do número de crianças e jovens já está remodelando as sociedades. Assim, não devemos restringir nossa busca pelas causas das baixas taxas de natalidade ao estudo apenas de hipóteses socioeconômicas. Questões biológicas importantes ainda precisam ser respondidas. Por exemplo: por que a demanda por reprodução assistida (RA) está aumentando em todo o mundo, independentemente de geografia, status social, local de trabalho, religião e sistemas políticos? Por que a taxa abrangente de gravidez não assistida (incluindo a taxa de abortos legais induzidos) vem diminuindo? Qual o papel da redução da qualidade do sêmen relatada em todas as regiões do mundo? As substâncias químicas (como os desreguladores endócrinos) que detectamos em nossos órgãos devido à exposição à contaminação por alimentos, ambiente interno e poluição do ar desempenham algum papel?

A rápida diminuição do número de crianças e jovens já está remodelando as sociedades.

Embora essas perguntas possam parecer simples, as respostas permanecem obscuras, e a razão para isso é inequívoca: os grandes estudos de campo necessários com amostras representativas de pessoas da população em geral nunca foram realizados.

Apesar de compartilharem um foco de pesquisa comum, demógrafos e biólogos reprodutivos raramente colaboraram. Suas diferentes perspectivas são evidentes até mesmo em sua compreensão do termo fertilidade: para os demógrafos, refere-se ao número de nascimentos; a área médica, por sua vez, o associa à capacidade de reprodução (fecundidade). 

Como resultado, casais submetidos a tratamento que concebem por meio de fecundidade reprodutiva (RA) seriam, num contexto demográfico, provavelmente classificados como férteis, mesmo que, após o tratamento, permaneçam inférteis num sentido médico e biológico. Foi documentado, por exemplo, que mais de 10% de todas as crianças na Dinamarca nascem atualmente como resultado de RA. No entanto, a RA permanece ausente das estatísticas anuais sobre taxas de natalidade. Portanto, cientistas em medicina reprodutiva e sociologia que trabalham com demografia devem colaborar para preencher as lacunas entre suas áreas de pesquisa e projetar estudos de campo multidisciplinares em larga escala necessários para identificar as causas sociológicas e biológicas por trás da atual crise na reprodução humana. Nos países escandinavos, onde pesquisas nessa área encontram-se relativamente bem sedimentados, a comunicação eletrônica em relação à segurança e à privacidade de dados pode facilitar o desenho desse estudo.

Apesar de compartilharem um foco de pesquisa comum, demógrafos e biólogos reprodutivos raramente colaboraram. Suas diferentes perspectivas são evidentes até mesmo em sua compreensão do termo fertilidade: para os demógrafos, refere-se ao número de nascimentos; a área médica, por sua vez, o associa à capacidade de reprodução (fecundidade).

Entre os possíveis fatores que podem contribuir para o declínio nas taxas de fecundidade estão os de ordem biológica (declínio na contagem de espermatozoides, falência de ovócitos, principalmente em mulheres com idade mais avançada, aumento da idade paterna e poluição ambiental), socioeconômica (urbanização, atraso na gravidez e instabilidade econômica), os relacionados ao estilo de vida (dieta e nutrição, tabagismo e consumo de álcool e estresse), médica (aumento do uso de tecnologias de reprodução assistida, que, apesar de ajudarem na concepção, preserva/passa adiante genes relacionados à baixa fertilidade, doenças crônicas e pandemias). 

O declínio das taxas de fecundidade tem implicações significativas para o crescimento populacional, para os sistemas de saúde e para a economia (aposentadoria e benefícios previdenciários são alguns exemplos). A taxa de fecundidade no Brasil, que era de cerca de 6 filhos por casal na década de 1960, tem diminuído drasticamente nas últimas décadas, atingindo, de acordo com o IBGE em 2023, aproximadamente 1,6 filho por casal. Como impactos dessa mudança, podemos citar o envelhecimento da população, desafios para o sistema previdenciário, queda da população economicamente ativa e desaceleração no crescimento da população. Portanto, não surpreende o fato de que a população estimada do Brasil em 2024 (cerca de 213 milhões, de acordo com o IBGE) tenha ficado em torno de 5% abaixo do previsto.

Em sintonia com os aspectos anteriormente mencionados, estudos por nós desenvolvidos recentemente na UFMG, e em fase final de elaboração para publicação, mostraram que cerca de 20% dos jovens universitários (idade média de 21 anos) da Região Metropolitana de Belo Horizonte avaliados apresentavam concentração espermática e número total de espermatozoides abaixo dos valores mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2021). Segundo a embriologista Raquel Alvarenga, da clínica Cegonha Medicina Reprodutiva de Belo Horizonte (MG), além da queda de fecundidade, a falta de acesso aos tratamentos de reprodução assistida agrava ainda mais a situação de um número crescente de casais que desejam ter filhos.

Retomando o tema central dessa reflexão, se as baixas taxas de natalidade decorrem, em última análise, da ausência voluntária de filhos, das condições econômicas, das incertezas atuais quanto ao futuro ou de qualquer combinação destes fatores, talvez não devêssemos nos preocupar, pois tais tendências podem mudar com o tempo. No entanto, se o declínio das taxas de fecundidade sinaliza uma crise duradoura – impulsionada por um número crescente de jovens com sistemas reprodutivos deficientes devido a, por exemplo, problemas ambientais –, então uma ação urgente é necessária. É hora de nossas autoridades de saúde e governos responderem. As gerações futuras dependem disso.

[Este artigo é uma versão ampliada de comentário publicado na The Lancet (Volume 405, Edição 10495, p.2121-2122, 14 de junho de 2025), sob a liderença de Niels E. Skakkebaek, do Departamento de Crescimento e Reprodução do Hospital Regional da Universidade de Copenhague, na Dinamarca]  

Luiz Renato de França | professor titular aposentado do ICB-UFMG