[Opinião] ‘Zé’, ou nossos heróis também erraram
Filme de Rafael Conde retrata com delicadeza o fracasso da opção pela luta armada defendida por parte da esquerda, escreve o professor Rui Rothe-Neves, da Fale
Segundo o último censo, cerca de 40% da população brasileira nasceu antes de 1985, quando um acordo no Congresso Nacional elegeu Tancredo Neves, encerrando o mais recente período de presidentes generais escolhidos pelos militares. A maioria dos brasileiros, portanto, nasceu depois que a ditadura terminou. Por isso, aumenta a importância das ações de promoção da memória daquele triste período. Por outro lado, o tempo também deveria trazer um distanciamento para avaliar erros e acertos da geração que combateu a ditadura. Essa é justamente uma das maiores qualidades do filme Zé, dirigido por Rafael Conde, professor da Escola de Belas Artes da UFMG, e lançado em 2024, por ocasião dos 60 anos do golpe de 1964.
O filme é inspirado na vida de José Carlos Novaes da Mata Machado, um dos estudantes expulsos da UFMG, onde estudava Direito, por força do Decreto 477, conhecido como o AI-5 da educação. José Carlos, que é interpretado por Caio Horowicz, veio a se tornar um dos principais líderes da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), uma das organizações de esquerda que partiram para a luta armada contra a ditadura. José Carlos foi preso várias vezes por seu ativismo político e passou anos vivendo na clandestinidade com sua companheira, Maria Madalena Prata Soares, no filme interpretada por Eduarda Fernandes. Foi capturado em São Paulo, torturado e morto em 28 de outubro de 1973, por agentes do DOI-Codi em Recife.
Dos quatro ex-estudantes da UFMG mortos pela ditadura, José Carlos foi o único enterrado pela família. Os outros três nunca foram encontrados – Gildo Lacerda, que estudou na Face, Walkiria Afonso Costa, estudante da FaE, e Idalísio Soares Aranha Filho, discente de Psicologia. Esses continuam na lista de 152 pessoas desaparecidas e somam-se às 219 oficialmente mortas pelos órgãos do Estado entre 1964 e 1985, conforme apurado pelo Ministério Público Federal. O corpo de Zé Carlos foi devolvido à família, em grande parte, sem dúvida, em razão de quem era seu pai, o jurista e professor Edgard de Godoi da Mata Machado. Ele lecionou Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da UFMG e foi deputado federal pelo MDB até a promulgação do AI-5, que cassou seu mandato parlamentar e o afastou da docência.
A perspectiva hegemônica, dos "nossos heróis", não deixa lugar para as dúvidas e desacertos de uma moçada que apanhou muito e terminou massacrada pelo regime.
O filme retrata a luta de José Carlos no movimento estudantil e busca transportar os espectadores de volta ao período sombrio da ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985. Mas engana-se quem esperava mais um filme militante. Ele apresenta uma visão sensível, intimista e, sobretudo, adota uma forma muito delicada – por meio da perspectiva um pouco naïve do protagonista – para abordar um tema que ainda considero tabu nesse debate: o fracasso da esquerda que pregava a luta armada. A perspectiva hegemônica, dos "nossos heróis", não deixa lugar para as dúvidas e desacertos de uma moçada que apanhou muito e terminou massacrada pelo regime.
O uso de planos fechados e closes imprimiu ao filme um intimismo, uma visão "de dentro" e, até mesmo, um sentimento de claustrofobia, muito de acordo com o roteiro, que tematizou abertamente as discussões do casal sobre continuar ou não com os companheiros que a repressão vinha desarticulando – às vezes, literalmente. E de como isso foi sofrido no dia a dia da clandestinidade.
Certamente, planos fechados possibilitam menor custo de produção, já que diminuem a necessidade de reconstruir a cidade de uma época passada, com transeuntes caracterizados, casas, lojas com letreiros e peças publicitárias, automóveis, orelhões. Não saberia dizer se a produção foi adequada à dramaticidade dos planos ou vice-versa. Fato é que, para além da dramaturgia, o filme é plasticamente muito cuidadoso, por exemplo, quando nos enquadramentos, homenageia os filmes construtivistas e destaca a arquitetura brutalista do período. Na cena em que Madalena está na delegacia, sendo interrogada na presença de seu filho menor, o ângulo e enquadramento não mostram os rostos ou – heresia das heresias – corta as cabeças dos meganhas contra uma acusada vista de frente. Assim, me lembrou iconicamente a famosa foto do IPM em que os "juízes" aparecem com o rosto baixo ou coberto pelas mãos, em contraste com a guerrilheira Dilma Rousseff, altiva no banco dos réus.
Curiosamente, o tom intimista foi escolhido também para o filme da hora, Ainda estou aqui, de Walter Salles, indicado ao Oscar de Melhor Filme. Infelizmente, dentre as escolhas que teve de fazer, o filme não tematiza se foi um erro a conduta do ex-deputado Rubens Paiva de se envolver com a resistência à ditadura quando tinha cinco filhos para criar. Essa é uma das (muitas e ricas) reflexões do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, lançado dez anos antes pela Editora Alfaguara e que serviu de inspiração para o filme. É uma discussão ainda a ser travada, de preferência antes que os 40% dos brasileiros que viveram sob a ditadura deixem de existir. Afinal, como todo ser humano, nossos heróis também erraram.