Internacional

Modelo de Telessaúde do HC é implantado na Amazônia peruana

Parceria envolve profissionais de saúde de universidades do Peru; projeto piloto confirmou viabilidade do projeto

Cardiologista Antônio Ribeiro orienta serviço de telessaúde, em Santa Clotilde, Loreto
Cardiologista Antônio Ribeiro orienta serviço de telessaúde, em Santa Clotilde, Loreto Arquivo pessoal

O governo do Peru aposta na economia proporcionada pela tecnologia da telessaúde para emitir com rapidez e precisão laudos de exames cardiológicos e oftalmológicos para a população ribeirinha de uma das áreas mais remotas da Amazônia peruana. Autoridades de saúde do país firmaram parceria inédita com o Centro de Telessaúde do Hospital das Clínicas (HC) da UFMG e a Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUC-Peru), com interveniência da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). O trabalho da equipe do HC vai se concentrar na implantação do sistema desenvolvido na UFMG e no treinamento dos profissionais peruanos.

No mês de maio, projeto piloto desenvolvido no vilarejo de Santa Clotilde, no Departamento de Loreto, comprovou a viabilidade da proposta, que deve envolver as universidades Nacional de San Marcos e Peruana Cayetano Heredia para ampliar o atendimento. “A região de Loreto representa um terço do território peruano, com cerca de um milhão de habitantes. É a região de menor densidade populacional do Peru e a que mais sofre com doenças transmissíveis como a malária. Por conta dessa característica, o cuidado de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, não é prioritário, o que vem aumentando o número de casos associados a problemas cardiovasculares e oftalmológicos”, explica o cardiologista do HC e coordenador da Rede de Teleassistência de Minas Gerais (RTMG), Antônio Ribeiro.

O médico, que esteve em Loreto acompanhado do chefe da Unidade de Telessaúde do HC, o oftalmologista Daniel Vitor Vasconcelos Santos, conta que o vilarejo Santa Clotilde está situado em território com dimensão aproximada à do estado de Minas Gerais. Lá existem apenas três hospitais, e o acesso se dá somente por barcos ou transporte precário, como motocicletas adaptadas.

Segundo Daniel Santos, a equipe da PUC-Peru instalou na região toda a infraestrutura de telecomunicação rural sem fio, que possibilitou alguma experiência em atendimento a distância. “Mas a metodologia aplicada ainda exige muito tempo e disponibilidade da equipe médica, que precisa estar conectada em tempo real à internet”, observa. Ele explica que a proposta do HC baseia-se em um modelo assíncrono – que dispensa conexão à internet em tempo real – para casos não urgentes. “Esse modelo traz ganhos na escala de atendimento, sem perder em qualidade e precisão dos resultados”, garante.

Como funciona
O profissional de uma unidade de saúde remota envia pelo sistema a demanda de atendimento para a central do Telessaúde, informando dados clínicos do paciente, exames ou mesmo imagens de lesões, para esclarecer dúvidas em relação ao diagnóstico e à necessidade ou não de encaminhamento do paciente. A demanda é classificada preliminarmente por esse profissional como eletiva, prioritária ou de urgência. Após análise remota, a equipe do plantão clínico da Telessaúde emite laudo do exame recebido (eletrocardiograma, Holter, Mapa, retinografia, espirometria) nos casos de telediagnóstico e responde às dúvidas do colega, no caso de teleconsultoria, dispensando, na maioria dos casos, a avaliação dos especialistas. 

“O serviço proporciona ao paciente um diagnóstico preciso e rápido, evitando muitas vezes que ele seja encaminhado para outra unidade de saúde, geralmente distante, ou enfrente longas filas de espera para atendimento especializado. Somente com a redução do custo desses encaminhamentos, é gerada economia de R$ 5,4 por real investido na telessaúde. Um dos componentes que mais oneram o atendimento especializado é o transporte do paciente das pequenas cidades para os grandes centros. Além disso, o paciente tem a conveniência de ser atendido com qualidade e próximo ao seu domicílio”, pondera Santos.

Desde 2005, quando iniciou suas atividades, a RTMG recebeu investimentos da ordem de R$ 37,7 milhões, gerando economia superior a R$ 206 milhões, com a redução dos encaminhamentos. A Rede atende 812 municípios mineiros e outros 34 nos estados da Bahia, Acre e Mato Grosso.

Mais de 3,6 milhões de laudos de eletrocardiograma já foram emitidos – em poucos minutos, para casos urgentes, e em até duas horas, para casos de rotina. Laudos de Holter, Mapa, retinografia e espirometria também são elaborados pela equipe de especialistas de plantão. Profissionais de 45 especialidades também colaboram com os colegas dos municípios conectados pelas teleconsultorias.  

A Rede também desenvolve aplicativos de suporte à decisão e de orientação a profissionais de saúde e a pacientes, para uso de anticoagulantes, cuidados de geriatria, diabetes, hipertensão e obesidade. Também produz cursos e aulas pela internet e material digital para capacitação, qualificação e treinamento de profissionais de saúde.

Coordenada pelo Hospital das Clínicas da UFMG, a RTMG reúne outras sete universidades públicas mineiras: as federais de São João del-Rei (UFSJ), Uberlândia (UFU), Juiz de Fora (UFJF), do Triângulo Mineiro (UFTM) e dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e a Estadual de Montes Claros (Unimontes).

'Parceria vai beneficiar populações mais vulneráveis'

A médica Ana Belen Gurierrez Rodrigues, representante da Associação Civil Pango, que administra o Centro de Saúde em Santa Clotilde, no Departamento de Loreto, traça um panorama das condições de saúde da região e fala sobre o que espera da parceria.

Santa Clotilde está situada na Amazônia Peruana, que representa um terço do território nacional. Poderia fazer um breve relato da realidade da saúde pública, dos investimentos no sistema e dos principais desafios enfrentados na região?
Lugares como a Amazônia foram isolados de iniciativas de modernização, reforma do setor de saúde e implementação do modelo de saúde integral. Por muitos anos, as políticas de saúde desconsideraram a realidade particular de cada região. Foram desenhadas para a realidade urbana, ignorando a grande diversidade geográfica e cultural de nosso país, revelando-se ineficientes e insuficientes para abordar os principais problemas. Com base nesses problemas, o processo de descentralização foi iniciado como uma oportunidade para reformular estratégias de saúde pública.

Atualmente, temos um sistema de saúde com cobertura limitada, e o seguro-saúde garantido pelo Estado está longe de ser universal. O financiamento da saúde continua a ser escasso e com distribuição desigual. O gasto por pessoa com saúde é de aproximadamente 205 dólares. A média nacional de habitantes por médico é de 445. No entanto, essa proporção varia muito dependendo da região. Em áreas urbanizadas, é de 245 habitantes, e em zonas remotas e vulneráveis, chega a 1.771 moradores por médico. 

Outra questão que deve ser identificada e confrontada coletiva e multissetorialmente são os "determinantes da saúde", devido ao seu grande potencial para reduzir os efeitos negativos das doenças e promover a saúde da população, o que implica abordagem urgente e importante para o desenvolvimento.

Nossos principais problemas são saneamento básico deficiente, baixa escolaridade e estilos de vida pouco saudáveis, exclusão social e contaminação do meio ambiente.

Quais doenças ainda não foram controladas ou registram aumento de casos? E qual é a população de maior risco?
O Peru está em um nível médio do processo de transição epidemiológica, e devido às características geográficas, sociais e climáticas, as doenças infecciosas continuam sendo prioridade. Há alta prevalência de doenças transmissíveis, como malária, doenças sexualmente transmissíveis, HIV/Aids, tuberculose, dengue e leishmaniose. E persistem doenças imunopreveníveis como hepatite B, febre amarela e tuberculose.

Além da alta taxa de mortalidade materna e perinatal, territórios mais pobres e excluídos sofrem com a baixa resolutividade dos serviços de saúde, alta porcentagem de gravidez na adolescência e baixa participação social.

A desnutrição infantil crônica (deficiência proteica calórica e de micronutrientes) é alta, principalmente em populações mais pobres e excluídas. Também há registro do aumento das doenças mentais, causadas pela alta prevalência de violência familiar, abuso infantil, alcoolismo, depressão, ansiedade, jogo e violência social. Também têm aumentado os casos de acidentes e lesões intencionais.

O país vem registrando aumento das doenças degenerativas crônicas como diabetes mellitus, hipertensão arterial e cegueira por catarata.

Qual a expectativa em relação à parceria com a Unidade de Telessaúde do Hospital das Clínicas?
Durante a visita ao HC, pude apreciar o trabalho que vem sendo desenvolvido para dar acesso e atenção médica especializada a centros de saúde onde esses serviços não estão disponíveis, e isso motivou a iniciativa de trabalho conjunto para oferecer os serviços à população de Santa Clotilde.

Com a evidência da demanda, comprovada após o projeto piloto, o serviço deverá ser implantado inicialmente em Santa Clotilde e depois nos centros de atenção primária de Loreto, para, finalmente, alcançar escala nacional como parte dos serviços de Telessaúde prestados pelo Estado peruano.

É uma iniciativa inovadora que exigirá o comprometimento de múltiplas instituições. O caminho ainda é longo, mas os benefícios médicos e econômicos serão importantes, e as populações mais vulneráveis serão as que mais se beneficiarão.

Teresa Sanches / Boletim 2024