Opinião

Quem pode respirar?

Professoras da UFMG e da UFSB defendem, em artigo, que caos sanitário e político põe em risco as vidas negras

— Por que eles estão nos tratando desse jeito?
— Quando foi que eles nos trataram diferente?
(Diálogo da série 'Olhos que condenam', 2019)

Em meio a centenas de milhares de pessoas vitimadas pela pandemia que tem como uma de suas principais características o comprometimento do sistema respiratório, a voz do afro-americano George Floyd, abafada, sufocada, silenciada, ecoou: “Não consigo respirar”. Não era o vírus que dificultava sua respiração. Não era a um profissional de saúde que George se dirigia. A voz, o fôlego e a vida de Floyd não foram tomados pela Covid-19. Também não foram vítimas do que tem sido a principal pauta dos telejornais brasileiros João Pedro, de 14 anos, que estava brincando em casa, ou João Victor, de 18, que distribuía cestas básicas na Cidade de Deus.

George, João Pedro e João Victor são três dos muitos meninos, jovens e homens negros vítimas da violência do Estado, assassinados pela polícia. As imagens do policial branco sufocando George Floyd correram o mundo, assim como correram mais de 70 balas na casa onde João Pedro estava, assim como corria a viatura que arrastou Claudia Ferreira por cerca de 350 metros no Morro do Congonha, no Rio de Janeiro, em 2014. As palavras de Floyd denunciaram ao mundo o que tem sido sufocante para quem é preto em países onde a humanidade foi forjada à imagem e semelhança da branquitude: não consigo respirar. 

Alguns se espantaram com as manifestações que clamam por justiça em resposta ao terrível assassinato. São gritos sufocados por tantos outros casos silenciados e diminuídos pelo racismo institucional. Gritos que há muito denunciam o estado de emergência permanente que põe em risco as vidas negras. Casos arquivados, agentes inocentados sem qualquer forma de responsabilização. A impossibilidade da memória e da reparação sustentada pela violência do esquecimento.

Enquanto vozes se erguem para afirmar que a pandemia pôs todos no mesmo barco, numa negação perniciosa das desigualdades sociais históricas que marcam a sociedade brasileira – negação que inclui a naturalização e introjeção profunda do racismo estrutural –, observamos a atualização dos mecanismos eugenistas em meio ao caos sanitário e político que se instaurou no Brasil e nos Estados Unidos. Em ambos os países, pessoas negras são maioria entre as vítimas fatais da Covid-19, em números desproporcionais ao índice de contaminação. Sem considerar os outros tantos motivos pelos quais a população negra é maioria no número de mortes. Máscaras de proteção para evitar o contágio, máscaras de oxigênio para salvar vidas, respiradores – a proteção e a respiração não estão garantidas a todos. Em suas Memórias da plantação (2019), Grada Kilomba fala sobre as máscaras usadas para que escravizados não se alimentassem nas plantações. Essas mesmas máscaras eram usadas como forma de silenciamento e tortura. A pandemia pôs em evidência novas máscaras, agora como forma de proteção à vida. Vida de quem?  

Alguns se espantaram com as manifestações que clamam por justiça em resposta ao terrível assassinato. São gritos sufocados por tantos outros casos silenciados e diminuídos pelo racismo institucional. Gritos que há muito denunciam o estado de emergência permanente que põe em risco as vidas negras.
Mulher protesta em Barcelona com retratos de vítimas do rascimo:
Mulher protesta em Barcelona com retratos de vítimas do racismo: movimento que eclodiu nos Estados Unidos espalhou-se para outras partes do mundoPedro Mata / Fotomovimiento / Fotos Públicas / CC BY-NC 2.0

Os mecanismos genocidas atuam, há anos, fazendo morrer pelo braço armado do Estado e deixando morrer nos serviços de saúde, superlotando e impedindo o acesso a equipamentos essenciais, produzindo feridas incuráveis nas vidas das mães e familiares de jovens assassinados, autorizando o avanço do garimpo em áreas de preservação e afrouxando a proteção de povos indígenas que, mais uma vez, veem-se em risco de extermínio por agente biológico. 

Outras engrenagens dessa necropolítica impulsionam a exposição ao vírus, dificultando o acesso à renda emergencial, flexibilizando as medidas de proteção, listando cada vez mais serviços como essenciais – serviços prestados por aquelas e aqueles que não podem escolher ficar em casa porque precisam do mínimo para garantir a subsistência de si e dos seus. São engrenagens articuladas que expuseram Mirtes Renata e seu filho Miguel Otávio, de 5 anos, ao risco do vírus e, depois, ao abismo. 

Enquanto publicamente o discurso genocida adquire tons de funcionalidade etária, destacando que os idosos são um grupo cuja morte é tolerável e que os jovens sobreviverão porque são saudáveis e têm mais tempo de vida para contribuir com o país, na prática o critério de vida e de morte é o mesmo de 500 anos atrás: as vítimas da pandemia são as mesmas da colonialidade de gênero e raça que se consolida nas Américas após o marco civilizatório colonial. Há quem diga que isso é passado. Como alerta Cidinha da Silva, em #Parem de nos matar! (2019), “considerar o processo de escravidão, que vitimou mais de 6 milhões de pessoas africanas (as que chegaram vivas) e seus descendentes, perdurando por 350 anos, como uma singela memória triste é rasteiro e racista demais”. É um passado continuado. Uma ferida aberta, cutucada cotidianamente com a mesma violência, atualizando o sofrimento como uma herança não elaborada. Será o genocídio negro um projeto? O genocídio é um projeto. 

Não estamos todos no mesmo barco. Nem mesmo respiramos o mesmo ar e da mesma forma. Alguns não terão sua cota de oxigênio garantida por um respirador, outros terão suas vias respiratórias prensadas despreocupadamente, outros terão seus corpos perfurados por armamentos, ou serão deixados cair sem redes de proteção.

Miguel buscava em sua mãe a segurança que tem sido impossível prover às crianças e jovens negros e indígenas no Brasil. Em 2017, o bebê Cirleudo Cabral Monteza Manchineri, da etnia Manchineri, foi baleado na cabeça enquanto dormia no colo de sua mãe, numa embarcação que se aproximava do porto de Feira dos Colonos, na cidade de Sena Madureira, no Acre. Com apenas um ano de idade, Cirleudo se tornou a mais jovem vítima entre 110 indígenas assassinados no ano de 2017, um ano após o golpe legislativo-midiático que depôs a presidenta eleita Dilma Vana Rousseff e que teve como justificativa, segundo muitos parlamentares, a defesa da família, das crianças e do futuro do Brasil. Não foi, definitivamente, em defesa de crianças como Miguel e Cirleudo que se argumentou naquele domingo, como tampouco é em defesa delas que se articula agora o maquinário do Estado que se propõe a enfrentar a pandemia.

Como já foi dito explicitamente, a morte aparece como destino de todos, mas no Brasil ela é uma realidade iminente para alguns, inclusive para indivíduos na mais tenra idade, seja num elevador de serviço ou nos colos de suas mães, desde que sejam crianças historicamente violentadas pela lógica da necropolítica colonial que desconsidera suas vidas como humanas. A vulnerabilidade, que o vírus lembra que é a marca constitutiva de todos, não existe deslocada dessas engrenagens que expõem as pessoas de forma desigual. Não estamos todos no mesmo barco. Nem mesmo respiramos o mesmo ar e da mesma forma. Alguns não terão sua cota de oxigênio garantida por um respirador, outros terão suas vias respiratórias prensadas despreocupadamente, outros terão seus corpos perfurados por armamentos, ou serão deixados cair sem redes de proteção. 

A morte, mais que um destino inevitável, é operacionalizada como um destino a ser imposto àqueles e àquelas a quem se pode impor a fome, o desespero, a negação de direitos, de assistência, de respiradores – a quem se nega o ar!

Paula Rita Bacellar Gonzaga, professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Paulo Freire, da Universidade Federal do Sul da Bahia, e integrante do Núcleo Conexões de Saberes, que compõe a Rede Direitos Humanos da UFMG

Claudia Mayorga, professora do Departamento de Psicologia da UFMG e integrante do Núcleo Conexões de Saberes

Lisandra Espíndula Moreira, professora do Departamento de Psicologia da UFMG e integrante do Núcleo Conexões de Saberes