Universidade é instrumento para emancipação ética humana, afirma João Antonio de Paula
Nesta entrevista, que abre as celebrações do aniversário da UFMG, o professor da Face fala ainda de pandemia, capitalismo e história da Universidade e de Minas
Neste 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, a UFMG completa 93 anos. Como parte das comemorações, será realizada amanhã, dia 8, às 10h, uma edição especial do ciclo de conferências Tempos presentes, com o tema UFMG, 93 anos, e Minas Gerais, 300 anos: encontro de histórias. Um dos participantes do evento, ao lado da reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida, e do presidente da Assembleia Legislativa de Minas, Agostinho Patrus, é o professor João Antonio de Paula, da Faculdade de Ciências Econômicas.
João Antonio analisou o encontro das trajetórias do estado e da Universidade no livro A presença do espírito de Minas: a UFMG e o desenvolvimento de Minas Gerais, lançado no ano passado pela Editora UFMG. Na obra, o professor – que é conhecido por seu trânsito entre campos distintos do saber, como a literatura e as ciências sociais – faz uma cartografia dos caminhos percorridos pela UFMG da sua fundação aos dias de hoje, relacionando as contribuições oferecidas pela Universidade às mais diversas áreas no estado durante esse processo mesmo em que se consolidava.
O Portal UFMG conversou com João Antonio sobre esse encontro de histórias, com foco no que ele pode nos dizer sobre o tempo presente e as aporias que a contemporaneidade nos tem apresentado, como a atual pandemia e a ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo.
Em seu livro, você defende que as histórias da UFMG e de Minas Gerais em muitos aspectos se confundem. Como isso se dá?
De início, é preciso entender que “Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas”, como escreveu Guimarães Rosa. De fato, Minas é uma realidade polifônica, contraditória: existe uma tensão própria na constituição da região, da capitania. Afinal, como nasceu Minas Gerais? Nasceu da rebeldia. O estado nasceu de movimentos “disruptivos”, digamos assim, como a Guerra dos Emboabas [1707-1709, disputa pelo direito à exploração das jazidas de ouro da região] e a Revolta de Vila Rica, em 1720, contra a criação de casas de fundição e instrumentos de repressão e controle do governo português. Então, isso marca o nascimento de Minas: a rebeldia contra as tentativas de controle e repressão é o mote da criação da capitania. Há, portanto, esse lado libertário, esse lado disruptivo, insurgente, nas origens do estado. Ao mesmo tempo, há todo um outro lado conservador, repressivo. Esses lados não se colocam nem como pura contradição, exatamente, nem como conciliação, mas em estado de tensão permanente. Em Minas, você tem um movimento de permanente tensionamento que resulta numa terceira coisa, que não é apaziguadora: o que você tem é uma inquietação que vai se transformando, vai se atualizando ao longo do tempo. Não há um “ponto morto”, em que se resolvem as contradições: há uma positividade nessa tensão. Minas Gerais é esse enigma, esse eterno se interrogar, o eterno voltar atrás para olhar para as origens, tentando entender o que vem pela frente. É uma inquietação positiva, que nos convoca a estar o tempo todo interpelando o que está acontecendo.
E como isso se relaciona com a história da Universidade?
É que o nascimento e a concepção da UFMG também se organizaram em torno dessa tensão, no âmbito dessa tensão. Pensemos na Faculdade de Direito, por exemplo, que é a primeira unidade da Universidade, criada em 1892 [A UFMG, propriamente, seria inaugurada em 1927, como Universidade de Minas Gerais]. Se entre os seus fundadores havia republicanos históricos, como João Pinheiro, que era um líder entre os republicanos, também havia monarquistas ferrenhos, como Afonso Arinos, que morreu na Europa em 1916, para onde emigrou desgostoso, porque não queria compactuar com a república. Afonso Arinos morreu sem nunca ter aberto mão da monarquia.
A universidade então reproduz esse embate entre passado e futuro, progresso e conservadorismo...
É também interessante lembrar que Afonso Arinos foi o primeiro autor regionalista brasileiro. Pelo sertão, um livro de contos seu [publicado originalmente em 1898], inaugura essa tradição do regionalismo, que vai estourar no Nordeste e no Rio Grande do Sul mais tarde, nos anos 1930. O regionalismo é essa literatura que tenta fixar a paisagem moral e física das regiões do país. O Afonso Arinos, um dos fundadores da UFMG, criou essa tradição. Contudo, entre esses mesmos fundadores também estava Raimundo Correia, um dos três grandes parnasianos brasileiros [com Alberto de Oliveira e Olavo Bilac]. Tem-se aí, então, na constituição da Universidade, um representante dessa literatura social, crítica, que é o Afonso Arinos, e um representante da literatura canônica do parnasianismo, uma literatura que busca o verso perfeito, o verso burilado até o limite, representada por Raimundo Correia. Toda essa tensão está na base da Universidade; ela nasce sobre essa tensão constitutiva, a mesma tensão constitutiva do estado de Minas.
Tensão entre o antigo e o moderno?
De fato, o modernismo mineiro nasceu na UFMG. Se você pensar nos grandes nomes do nosso modernismo, muitos foram alunos ou professores, e tiveram, de algum modo, vínculos com a Universidade. Aníbal Machado, Drummond, Emílio Moura, Ciro dos Anjos, Pedro Nava, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Guimarães Rosa... Minas tem essa tradição modernista muito forte, que tem laços indissolúveis com a Universidade. Mas, por outro lado, você também tem uma produção classicista forte, que é também UFMG. Tivemos, por exemplo, figuras como Arduíno Bolivar, que foi professor na Faculdade de Ciências Econômicas e na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Arduíno era um grande latinista, voltado para a cultura clássica. Isso tudo está muito presente na história da UFMG: tanto a forma clássica quanto o lado modernista, irreverente. Essa é uma tensão que vai sendo construída e reconstruída ao longo do tempo e que se reflete na forma como tendências como o barroco, por exemplo, que era a arte da contrarreforma e do absolutismo na Europa, se transformaram, no Brasil, em instrumentos de liberação. Em Minas, houve isso: nos apropriamos de formas europeias para dar a elas formas inovadoras, transgredindo o cânone.
No seu livro, você afirma que as motivações para a criação da UFMG remontam ao movimento da Inconfidência Mineira, no final do século 18. Como isso se dá?
Sobre isso, é interessante lembrar que a Inconfidência Mineira teve duas etapas principais de interpretação no Brasil. Na perspectiva oficial, do início do século 19, ela foi um movimento desvalorizado e rejeitado, no sentido de ter sido um movimento antibragantino. Contudo, quando veio a república, o sinal mudou, e passou a haver uma mitificação da Inconfidência. Antes rejeitado, o movimento passou a ser entendido como fundador da nacionalidade, em uma perspectiva um tanto transcendente. Uma espécie de hagiografia foi estabelecida, e Tiradentes, que antes era uma figura malvista, passa a ser considerado herói nacional. Depois, num terceiro momento, que é o momento em que estamos agora, há uma tendência a negar essa segunda interpretação mediante um esforço de desmitificação da Inconfidência, que acaba por vê-la como algo irrelevante. A meu ver, essa é uma perspectiva equivocada. A Inconfidência teve as suas limitações, as suas contradições, mas não foi algo irrelevante, desimportante. Os inconfidentes tinham ideias avançadas. Eles tinham um projeto, que incluía a implantação de fábricas, a mudança da capital, a melhoria de transportes e comunicações. Entre os inconfidentes, havia quem defendesse o fim da escravidão e a criação de um estado nacional, que uns queriam que fosse republicano e outros pretendiam que se constituísse no âmbito da monarquia constitucional. O que ocorre é que nesse projeto dos inconfidentes constava a criação de uma universidade, que terminou por ser a UFMG: a universidade de todos os mineiros, um centro de reflexão, de pensamento, de educação ligado às raízes históricas de Minas.
Esse embate entre perspectivas opostas parece fecundo, no sentido de promover a evolução dos modos de vida e de pensamento. Contudo, com o esgarçamento que as relações sociais alcançaram na contemporaneidade, e particularmente no Brasil, essas relações de tensão parecem estar fomentando mais o extremismo que o desenvolvimento humano. Em um tempo em que o mundo se torna cada vez mais refratário ao contraditório e à complexidade, qual o caminho para a universidade, que tem essas noções como sua própria razão de ser?
Essa pergunta é muito interessante, eu tenho pensado muito sobre isso. Qualquer resposta para isso passa por se recuperar o sentido de ser de uma universidade. Para que serve a universidade, o que é específico da universidade? Entendo que há pelo menos quatro coisas aí. Primeiro, temos a universidade como uma espécie de “reserva moral” da sociedade, de reserva de certos valores universais. Estamos falando das ideias de liberdade, de justiça, de verdade. Isto é parte da razão de ser da universidade: reafirmar esses valores universais. Esse é seu compromisso inegociável. Em segundo lugar, temos a universidade como o lugar de preservação do patrimônio cultural da humanidade. A universidade é uma espécie de repositório do que a humanidade construiu ao longo do tempo, o repositório do conhecimento das grandes conquistas da civilização. Uma terceira dimensão da universidade é ser o lugar da produção do conhecimento novo. Nesse sentido, sua razão de ser não é só conservar o conhecimento, conservar o patrimônio cultural estabelecido, mas avançar, inventar, inovar: a sua função é também prospectar. E por fim há uma quarta: a dimensão da universidade como um dos instrumentos da emancipação humana, que abrange liberdade, igualdade, diversidade e sustentabilidade.
Do que falamos quando falamos em emancipação?
Estamos falando da universidade como um espaço ético. A palavra ética vem do termo grego éthos, que quer dizer tanto morada, abrigo, como hábito, costume, comportamento. A ética seria então o hábito, o costume, o comportamento que se exige de todos para a melhor vida na cidade para todos, isto é, a vida reta, justa, bela. Esse é um compromisso fundamental da universidade, um compromisso que é de fato decisivo, do qual ela não pode fugir [a defesa e o fomento dessa ética]. A universidade é esse lugar emancipatório, que permite ir além do que está dado, ir além do que está posto, inventar um mundo, inventar novas possibilidades, novas sociabilidades [com vistas à conquista do bem-estar coletivo]. É claro que a universidade não faz isso sozinha, mas ela tem um compromisso fundamental com isso.
A pandemia parece nos trazer o exemplo perfeito para essa questão, quando pensamos no uso – mais especificamente, a falta dele – das máscaras pela população ou no discurso antivacina, que está outra vez recrudescendo no país.
A pandemia veio mostrar muito claramente isso. As primeiras manifestações desse governo que está aí [aqui, refere-se especificamente ao nível federal] diziam mais ou menos o seguinte: “muita gente vai morrer, vamos deixar que morram, do contrário seria preciso gastar muito dinheiro”, sob a noção de que a vida humana tem um preço, de que a vida humana pode ser medida. O que quero dizer é que esse tipo de calculabilidade é algo completamente incompatível com a ideia de universidade de que estamos falando aqui, a universidade no sentido emancipatório, no sentido crítico que ela deve ter. Então é importante notar que, nesse momento de pandemia, a universidade ocupou um papel muito importante de denunciar essas falácias mercantis, individualistas e privatistas, reiterando o sentido dessa instituição como instrumento crítico.
Não raro, esses discursos mercantis se revestem de uma aura de racionalidade contábil...
A tendência dominante na modernidade é enfatizar uma forma de racionalidade como simples razão instrumental. De novo, vamos mobilizar a etimologia. A ideia de razão tem duas matrizes na tradição ocidental, uma grega e a outra latina. A tradição grega vem de legos, que deu “lógica”. Legos significa ligar, articular, pensar. Já a tradição latina vem de ratio, que significa contar, calcular, contabilizar, controlar. Então é preciso perceber que a própria ideia de razão tem esses dois lados, ela se constitui com base em uma tensão: se, de um lado, diz respeito a contar, calcular, contabilizar, de outro lado diz respeito a raciocinar, pensar, articular.
Há também um outro núcleo de tensão importante, que é a ideia de educação e de cultura, que remete a duas matrizes. Uma é a matriz grega, com a ideia de paideia, de formação. É de onde nasceu “pedagogia”. Aqui, educar é formar – formar plenamente, e não apenas do ponto de vista instrumental e imediato. Educação é, então, formar para o melhor, isto é, para que se possa contemplar as possibilidades do melhor. Já pela tradição latina, tem-se a ideia de cultura, que remete a cultivo, cultivar, cultivar o solo, plantar. Tem-se aí, portanto, duas ideias de educação, a de cultivar e a de formar, e as duas são importantes. A universidade seria, então, o lugar para explorar todas essas dimensões por um viés emancipatório, isto é, com o sentido de ir para além do imediato, do instrumental. Estamos falando no sentido de formar para a humanidade livre, para a humanidade emancipada – emancipada em todos os sentidos. Tudo isso se relaciona com a valorização do interdisciplinar, do transdisciplinar, da diversidade, da alteridade, do não pragmático do mundo – a valorização da imaginação criadora, enfim. Tudo isso está presente na razão de ser da universidade – e a nossa Universidade, em particular, tem valorizado muito isso.
A produção científica da Universidade, neste período de pandemia, me parece ser um exemplo disso. Via de regra, os artigos e notas técnicas que vêm sendo publicados pelos pesquisadores da UFMG seguem essa perspectiva humanista, como no caso dos alertas feitos pelos pesquisadores da Faculdade de Ciências Econômicas sobre os riscos vividos pelos moradores das periferias urbanas – ou o reiterado alerta que tem sido feito sobre a falácia de se colocar em oposição saúde e economia, quando na verdade elas não concorrem entre si.
De fato, eu mesmo escrevi um livro sobre essas relações entre a história, o capitalismo e as epidemias. Vai ser publicado em breve pela Editora UFMG. Eu quis pensar as epidemias no capitalismo e o próprio significado do capitalismo, isto é, como é que ele combate ou não combate, como é que ele enfrenta o problema das pandemias. Porque o capitalismo tem um “gargalo” na hora de enfrentar problemas dessa envergadura; ele não consegue enfrentar nada que não seja resolvido pela lógica de mercado. Quando o mercado não dá conta, o capitalismo entra em colapso, fica paralisado. É o que estamos vendo agora. A pandemia está explicitando mais uma vez esses limites do capitalismo liberal, isto é, a incompatibilidade entre a vida humana democrática e a lógica do lucro, do imediatismo, do individualismo, do privatismo. A pandemia atual explicitou algo parecido com o que ocorreu em 1929. A crise de 1929 obrigou o capitalismo a uma reforma importante. Obviamente, na medida em que os efeitos positivos do reformismo foram passando, ele voltou a impor outra vez a sua lógica privatista, imediatista.
Falando em crises, fico com a sensação de que desde a crise de 2008 a gente se manteve em certo estado de suspensão...
A crise que começou em 2008 não acabou, ela foi agora atravessada pela pandemia. Se extrapolamos a questão puramente biológica, epidemiológica, o que é esta pandemia? É algo que explicita a incompatibilidade desse mundo administrado de maneira individualista, privatista, com a preservação do interesse público. Em face da pandemia, até um ultraliberal é obrigado a reconhecer a falência de seus dogmas, de seus interesses, a sua incapacidade de lidar com realidades complexas e entendê-las. A pandemia deixa claro que o sistema que tem vigorado em termos sociais e políticos não é capaz de lidar com as questões realmente importantes da vida humana. E não é só a pandemia, claro. Ela tem uma intensidade particular neste momento, mas você tem fenômenos como o aquecimento global, a crise ambiental... É preciso compreender que é a exacerbação imperialista o que provoca essa vaga de migrações forçadas no mundo inteiro, milhões e milhões de pessoas vagando sem nenhum lugar de ficar, pessoas sem terra, sem casa, sem país; nômades forçados pela guerra, pela fome, pela desertificação, pela violência etnorracista. Todos esses fenômenos estão ligados. Estamos falando de um mal-estar generalizado que é fruto de um tipo de ordem social que o capitalismo cria.
Mas o desenvolvimento, o dito “crescimento das economias”... essa não é uma necessidade incontornável?
Celso Furtado, um intelectual decisivo para o pensamento brasileiro, já dizia que desenvolvimento não é crescimento. Definitivamente. Você pode crescer e não se desenvolver. Que é o caso brasileiro. De 1900 a 1980, o Brasil foi a segunda economia que mais cresceu no mundo. O país só não cresceu mais que o Japão. Agora, que crescimento foi esse? Foi o crescimento do mesmo, um crescimento que reproduziu e reiterou a concentração da renda, a desigualdade, a exclusão, a marginalização, o racismo – em suma, um crescimento que manteve as mazelas históricas do país. Isso não é desenvolvimento.
O que é então desenvolvimento?
Vou abusar de novo da etimologia. Em francês, desenvolvimento [dévelopement] significa desenvelopar, tirar do envelope: pegar alguma coisa que está oculta e colocá-la a nu. Significa desvelar, revelar, explicitar. Em espanhol, desenvolvimento [desarollo] nos remete a “tirar a rolha”, isto é: permitir que algo que está oculto se expresse, se manifeste, como o cheiro, a fragrância do vinho. O que quero dizer com isso é que, em última instância, o desenvolvimento só é legítimo quando é capaz de ser isso, de fazer isso: possibilitar que o que está contido, aprisionado, se liberte; explorar as inesgotáveis reservas da criatividade humana.
Na prática, como essa ideia pode se manifestar?
No caso do Brasil, isso diria respeito ao país valorizar as suas tradições. Você não pode simplesmente importar um modelo, seja ele qual for, de tecnologia ou de arte. Minas Gerais é interessante nesse sentido. A história do estado é de tomar o modelo estrangeiro e transformá-lo, transfigurá-lo. Desenvolvimento significaria a mesma coisa: tomar uma tecnologia importante, que vem de fora, mas fazer ela ela expressar os interesses do que está aqui, a solução de nossas mazelas crônicas. Esse é o sentido de desenvolvimento. E isso passa por transformações estruturais. Do ponto de vista do Celso Furtado, desenvolvimento significa transformação... significa revolução. Ainda que ele não fale em uma revolução social, é disso que se trata. Transformações sociais emancipatórias: desenvolvimento é isso. Esse é o compromisso efetivo do desenvolvimento.
Ao que parece, estamos em face de um impasse, neste início de século. Qual a saída?
No poema Prece de um mineiro no Rio, Drummond escreve: “Espírito de Minas me visita (...) / lança o seu claro raio ordenador”. Drummond está na cidade grande, cheia de barulhos. Então, em uma noite, no tumulto da cidade, ele sente essa presença. Alguma coisa se impõe a ele, desperta-o daquele marasmo e lança sobre o seu mundo um claro raio ordenador. O que ele quer dizer é que existe uma possibilidade de compreender esse nosso mundo caótico. Existe um “fio vermelho”, capaz de enlaçar tudo isso. E eu diria que esse fio vermelho que a tudo pode enlaçar é que precisa ser puxado. Para entender o que está acontecendo, é preciso entender que tudo isso são manifestações, são expressões de um certo tipo de ordem social. A gente só vai conseguir superar tudo isso se a gente entender que há uma lógica por trás disso que aparece como caótico. Eventos e processos que se apresentam como fenômenos isolados, desconexos, têm, de fato, uma determinação comum, são resultados concretos do modo de funcionamento do capitalismo. A precarização e a superexploração do trabalho, a retirada de direitos sociais, a concentração da renda e da riqueza, a destruição ambiental, o ódio à democracia: essas coisas são manifestações do capitalismo contemporâneo.
Como assim?
Hoje, para tentar evitar a queda da taxa de lucro, o capitalismo lança mão de uma série de instrumentos políticos, econômicos, tecnológicos que buscam negar as contradições que levam às crises capitalistas. Isso é visível aqui no Brasil. Aqui, o capitalismo apresenta especificidades, é um capitalismo dependente, periférico, que, ao mesmo tempo em que se mantém subordinado aos interesses do grande capital internacional, tem como característica central uma extremada concentração da renda e da riqueza. Aqui não houve nem reforma agrária nem reforma urbana, e se preserva iníqua estrutura tributária, regressiva e injusta. Todas as vezes que a mobilização social ameaça os privilégios dos poderosos, eles têm mobilizado um variado conjunto de instrumentos que vão da cooptação à repressão direta e brutal. Foi assim no passado; está sendo assim agora.
Como o poema do Drummond entra nessa história?
Drummond escreve “Espírito mineiro circunspecto / talvez, mas encerrando uma partícula / de fogo embriagador, que lavra súbito”. É essa a ideia. O que é Minas? É essa realidade aparentemente circunspecta, contida, mas que contém um grau de loucura, alguma coisa que queima e que, em algum momento, se expressa por meio de uma ação transformadora, contestatória, emancipatória. Tudo isso são elementos da cultura mineira que a Universidade tem tentado preservar, e esses elementos são mais que necessários hoje em dia. Essa coisa que lavra súbito, essa coisa que explode como resposta contra a vida danificada. Adorno nos coloca essa noção importante, de se perceber o capitalismo como um sistema de produção de vidas danificadas. Então, é preciso combater a vida danificada mobilizando essas energias, as potências da criatividade, da invenção, da crítica. A vida humana é isso, é aquilo que existe como um milagre permanente, e a universidade tem um papel decisivo ao nos lembrar disso.
Como isso se dá?
A universidade é um dos espaços, um dos poucos espaços que não estão submetidos ao mercado e, portanto, podem resistir a ele. A universidade é, ou deveria ser, imune a modismos. A tradição da universidade é de repúdio a esses fetichismos imediatistas. Adorno dizia que, em certos momentos, mesmo sem saber muito bem para onde ir, é preciso resistir e contraditar. Nossos projetos estratégicos, nossa capacidade de mobilização estão muito enfraquecidos. Estamos dispersos, desmobilizados. O momento é difícil, mas é como disse Murilo Mendes: “Ainda não estamos habituados com o mundo. Nascer é muito comprido.”