Grupo liderado pela UFMG desenvolve IA para prescrição acessível de medicamentos
Iniciativa tem parcerias com universidades de Portugal e de Moçambique e conta com recursos da Fundação Bill e Melinda Gates
“Erros de medicação permanecem em patamares mundialmente inaceitáveis, custam vidas, causam sequelas, geram demandas judiciais e sobrecarregam sistemas de saúde. Receitas padronizadas geradas pelos sistemas digitais carecem de orientações adaptadas a usuários com letramento desigual e experiências culturais diversas.” Esse trecho resume a justificativa de um projeto coordenado na UFMG que vai propor um sistema inteligente de geração de orientações para prescrição de medicamentos, desenvolvido por refinamento de modelos de linguagem (LLM) com um acervo de textos e imagens validado por especialistas.
O novo sistema será aplicado ao atendimento de atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS). Médicos, dentistas, enfermeiros e outros profissionais que prescrevem medicamentos montam as receitas em um sistema eletrônico seguindo regras e preenchendo campos padronizados, criados para diminuir a chance de erros. “O sistema do SUS é excelente. Mas a linguagem é dura, difícil de entender para a população em geral. Palavras e termos técnicos favorecem apenas quem prescreve e quem entrega o medicamento. Nosso objetivo é, por meio da inteligência artificial, ajudar o paciente a usar os medicamentos de forma correta”, afirma a professora Zilma Nogueira Reis, da Faculdade de Medicina da UFMG, coordenadora do projeto e do Centro de Informática em Saúde (Cins) da unidade.
Zilma está à frente de equipe multidisciplinar de pesquisadores – incluindo estudantes de graduação e de pós-graduação – da UFMG, da Universidade Federal de São João del-Rey, da Universidade do Porto (Portugal) e da Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, e técnicos do Ministério da Saúde do Brasil. O projeto foi contemplado com R$ 500 mil pela iniciativa Grand Challenges da Fundação Bill e Melinda Gates, cujo edital para o Brasil selecionou propostas de uso equitativo da inteligência artificial para melhorar a saúde global.
Contexto cultural e grau de letramento
De acordo com o texto do projeto, os modelos LLM refinados com dados de domínio são capazes de gerar texto e imagens em resposta a solicitações dos usuários. Essa capacidade pode ser utilizada para gerar orientações em prescrições de medicamentos, acessíveis e adaptadas ao contexto cultural e ao grau de letramento de cada paciente. A proposta extrapola estratégias convencionais de simplificação textual, gerando respostas inteligentes que incorporem linguagem verbal e visual para comunicar conceitos e procedimentos da posologia de forma eficaz, segura e sensível. O objetivo é reduzir riscos e contribuir para que o paciente compreenda e gerencie da melhor forma seu estado de saúde.
Os grupos-alvos do sistema são pacientes (ou seus cuidadores) suscetíveis a erros no uso de medicamentos, por dificuldades na interpretação das receitas: pessoas com baixa escolaridade, pessoas de comunidades tradicionais, idosos, pessoas com insuficiência visual ou auditiva. “Informações como idade, escolaridade e região de residência do paciente vão subsidiar uma orientação compreensível para a preparação para o uso do medicamento, a aplicação propriamente dita e procedimentos posteriores, quando for o caso”, explica Zilma Reis. Ela exemplifica: diante da prescrição de se tomar um comprimido “de oito em oito horas”, muitas pessoas entendem “às oito da manhã e às oito da noite”. Uma solução seria orientar para a ingestão dos comprimidos às 6h, às 14h e às 22h, como uma das possibilidades de horários. Essa forma de orientação esclarece o conceito de intervalo entre as doses.
Uma vez estabelecidos os comandos, a IA elabora o texto: chama a pessoa pelo nome, diz o nome completo do medicamento, explica como usar e ainda recomenda medidas de segurança, como a forma adequada de guardar o remédio.
Projeto inédito
De acordo com Zilma Reis, o grupo fez uma ampla revisão de literatura, em várias línguas, e não achou nenhum outro trabalho do gênero. Embora o apoio da Fundação Bill e Melinda Gates tenha sido oficializado só muito recentemente, estudos vêm sendo feitos desde janeiro deste ano, e o cronograma já está bem adiantado. “Já estamos utilizando um software livre de inteligência artificial, no qual podemos fazer as adaptações necessárias. E temos um protótipo do sistema em funcionamento e um artigo aceito por revista especializada”, conta a professora da Faculdade de Medicina.
Os planos incluem a realização de estudo de validação da tecnologia, em parceria com a Secretaria de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde. Será feita avaliação em cenário real, envolvendo conjunto significativo de prescritores que já utilizam o Prontuário Eletrônico do Cidadão do Sistema e-SUS Atenção Primária à Saúde, para verificar aceitabilidade e viabilidade do uso da tecnologia por profissionais da linha de frente.
Os produtos também poderão beneficiar distintos países lusófonos, de forma direta Moçambique, onde parte das validações serão realizadas com a participação de médico-pesquisador que já atua em farmacovigilância naquele país. A metodologia poderá ser utilizada em outras soluções inovadoras que promovam a saúde pública global, com foco na segurança das orientações aos pacientes, explorando também outros idiomas e públicos.
Transparência e possíveis vieses
A intenção é que o estudo abra possibilidades para atender uma diversidade cultural mais ampla, como a dos povos indígenas, cujos idiomas e experiências culturais desafiam a comunicação e a compreensão de orientações para o autocuidado à saúde. Também está prevista a geração de orientações para prescrições complexas, como no suporte a pessoas polimedicadas.
O projeto também prevê cuidados com a transparência – a compreensão de como o modelo funciona é importante para a confiança do usuário – e possíveis vieses, como aqueles relacionados a desvantagens históricas de determinados grupos sociais e à representatividade do conjunto de dados.
Este é o terceiro projeto liderado por Zilma Reis aceito pelo programa Grand Challenges. “Temos a enorme satisfação de, por meio desse programa, integrar uma rede de pesquisas baseada em inovação solidária, cujo objetivo primordial é reduzir as desigualdades no acesso à saúde”, salienta a pesquisadora.