Pesquisa e Inovação

Tese analisa violência conjugal em famílias isoladas dos centros urbanos

Pesquisadora da Psicologia visitou dez comunidades rurais mineiras; fatores como a dificuldade de deslocamento e a falta de informação agravam situação das vítimas

Mulheres acreditam que a violência dos parceiros está relacionada ao consumo de álcool
Mulheres acreditam que a violência dos parceiros está relacionada ao consumo de álcool Pixabay.com / Creative Commons

Mais de um terço das brasileiras que vivem na zona rural são vítimas de agressões dos cônjuges, conforme pesquisa realizada em 2005 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O índice é alarmante – e pode estar subestimado, segundo a psicóloga Aline Gomes Martins, autora de pesquisa de doutorado sobre o tema. Isso porque fatores como a “naturalização” da violência e o medo de denunciar limitam o acesso a informações nesses locais.

“A distância em relação à cidade, a ausência de vizinhos, a falta de telefone e a insuficiente ação da polícia deixam essas mulheres em situação de extrema vulnerabilidade”, justifica a pesquisadora, argumentando ainda que a cultura patriarcal, legitimada pela violência, “abafa os gritos de socorro dessas mulheres”.

Entre 2014 e 2015, Aline visitou dez comunidades rurais situadas em municípios de Minas Gerais*, a fim de investigar e compreender os significados e as práticas relacionadas à violência conjugal, segundo testemunhos das moradoras locais. A pesquisa resultou na tese A violência conjugal em contextos de ruralidade, defendida em junho no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Fafich.

O episódio em que a esposa permaneceu, por dois dias, amarrada a uma árvore, foi um dos que mais impressionaram a pesquisadora. A punição teria sido motivada por ofensas verbais proferidas contra o cônjuge. “Privada de alimentação e banho, a mulher também sofreu picadas de insetos e ainda apresentava as marcas”, contou Aline.

Outra vítima relatou que, por não ter cumprido as tarefas domésticas, o marido a obrigou a dormir no curral por uma semana. “Essas mulheres não visualizam saídas diante dos castigos e ameaças sofridas. É como se esse contexto fosse próprio do seu entorno e fizesse parte de seu destino”, comentou a autora. 

Sem prontuário

Aline relatou que, a princípio, tentou acessar possíveis entrevistadas para a pesquisa por meio da Delegacia de Mulheres, que fica na zona urbana – mas a consulta foi improdutiva. “Além da dificuldade de comunicação e deslocamento das vítimas, predomina o desconhecimento sobre os dispositivos de denúncia”, justifica.

Para chegar a essas mulheres, ela recorreu às Unidades Básicas de Saúde (UBS) que cobrem as localidades rurais. “Identifiquei 34 casos, mas em apenas 12 pude coletar dados. Em algumas das residências, a visita não era recomendada por causa da presença frequente dos maridos. Em outros casos, as vítimas haviam fugido de casa. Houve também as que omitiram os episódios violentos”, conta a autora, sublinhando que, entre as próprias agentes de saúde, prevalecia o medo de revelar os casos, já que elas também moravam nos povoados.

Por causa desse contexto de intimidação, Aline teve de mascarar o teor de sua pesquisa, até criar vínculo e adquirir a confiança das entrevistadas. “A princípio, aleguei se tratar de um estudo amplo sobre mulheres rurais, para que fosse possível, aos poucos, me aproximar das vítimas. Por se tratar de um assunto silenciado nas comunidades e por medo de represálias, normalmente elas resistem em falar sobre as agressões”, descreve

Naturalização e atenuantes

A pesquisadora constatou que o histórico de violência das mulheres entrevistadas começou, em muitos casos, ainda na infância e adolescência, na condição de testemunhas ou vítimas da hostilidade dos pais. Observa-se nas comunidades, segundo Aline, um fenômeno de “naturalização da violência”. “Legitimada como prática educativa de controle, a violência tornou-se, para essas famílias, uma entidade concreta, naturalmente presente”, lamenta. 

O consumo de álcool foi mencionado por nove entre as vítimas como fator associado aos episódios de agressividade. Dessas, oito destacaram que, sem a bebida, o parceiro não é violento. “Elas parecem acreditar que a culpa pelos atos está na substância. Essa leitura atenua a gravidade das situações e dificulta a tomada de posição”, observa a autora. O ciúme também foi enumerado pelas mulheres como pretexto para os ataques. “A ideia de que as reações ocorrem por amor é recorrente, e contribui para manter essas mulheres obedientes”, comenta.

A pesquisa possibilitou afirmar, segundo Aline Gomes, que a rede de atenção à mulher não alcança as demandas dos ambientes rurais – onde também não existem serviços para acolher quem se sente desprotegida. A efetivação de seus direitos, no entendimento da psicóloga, depende da implementação de políticas públicas localizadas, em uma perspectiva que considere, além da punição aos infratores, aspectos preventivos. Por fim, a psicóloga sugere o fortalecimento dos movimentos sociais em prol da mulher rural. Pode ser o caminho para a construção de uma perspectiva capaz de produzir mudanças de paradigmas em toda a sociedade”, conclui.

*Os nomes das localidades envolvidas na pesquisa são mantidos em sigilo, conforme determinação do comitê de ética da Plataforma Brasil, base de registros de pesquisas envolvendo seres humanos

Tese: A violência conjugal em contextos de ruralidade
Autora: Aline Gomes Martins
Orientador: Adriano Roberto Afonso do Nascimento
Defesa: 27 de junho de 2017, no Programa de Pós-graduação em Psicologia

Matheus Espíndola